
Por Ernesto Campos
“A complexidade crescente das circunstâncias obriga os poderes públicos a interferir mais frequentemente” Gaudium et Spes, n.º 75
A bem dizer, o estado de emergência anula o Estado de direito. Este garante liberdades que o estado de emergência suprime: suprime-nos a liberdade de circulação no tempo e no espaço, multa-nos, faz-nos pagar a multa imediatamente no meio da rua, apresentam-se-nos medidas cuja razão de ser parece, no mínimo, pouco convincente.
É exemplo disso o plano de prioridades de vacinação. Afinal as vacinas são poucas; ou sobram (?!) e são aproveitadas para quem está mais à mão, a fim de não se desperdiçarem, o que seria pior. Analisadas casuisticamente, tais situações poderão, até, justificar-se, mas a escolha não pode ser feita assim, como calhar. Há um plano de prioridades, mas não houve planeamento rigoroso que previsse contingências. Ninguém contestou que o grupo prioritário fosse o dos profissionais de saúde e, logo depois, os utentes e funcionários dos lares; e os octogenários em razão da sua baixa reserva fisiológica. E os políticos também, até simbolicamente. Mas, a seguir vem a arbitrariedade; não parece adequado que haja, prioritariamente, vacinas para militares, mas não para bombeiros ou para deputados, mas não para professores (em aulas presenciais).
A pandemia tem sido caracterizada de vários modos: é dramática, é grave, somos os piores do mundo, segundo os dados estatísticos, impõe-se medidas drásticas hoje, para não morrermos amanhã. Ou facilita-se agora e restringe-se depois. Ora escolas fechadas sem atividade letiva e, depois com aulas à distância, se o Estado entregar aos alunos os computadores que prometeu e, afinal, não tem. Podemos dizer que a pandemia que vivemos é, no mínimo, confusa. E tal confusão torna compreensíveis os avanços e recuos das medidas impostas. Mas já não é tão compreensível a sua correção tardia e a falta de humildade no reconhecimento do erro ou inadequação como é pecha de certa política.
Pese, embora, tudo isso, neste tempo de incerteza, a única certeza é que estamos em alto risco sanitário. Daí, legitimar-se que o Estado, como lhe compete, decrete a emergência e tome decisões que, melhores ou piores, visam, sem dúvida, a proteção da comunidade. Fechar ou abrir as escolas não é um ato de fé para esconjurar a pandemia, é uma aposta na aleatoriedade dos modelos matemáticos. Mas o certo é que também os dados científicos se revelam, por vezes, contraditórios ou escassos. E, então,terá de prevalecer, a decisão política. Seja ela baseada, como é desejável, no princípio da precaução, isto é, de prudência na aplicação das políticas neste tempo de incerto resultado. Impõe-se, aí, que as medidas sejam provisórias e modificáveis, de avaliação continuada de custos e benefícios sociais; e, ainda, proporcional às necessidades. Sobretudo, medidas que sejam explicadas à comunidade com clareza e transparência, quer dizer, dignas de confiança.
Com efeito, validar as políticas cautelares do Estado não é, como foi dito, “matéria de fé”; e só se pode acreditar na ciência. Mesmo sabendo que a ciência não pode, de imediato, chegar a conclusões sobre a ausência de riscos, tranquilize-nos, ao menos, a doutrina de que “todas as coisas estão dotadas de consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar reconhecendo os métodos peculiares de cada uma das ciências e técnicas.” (G S n.º 36).
Valha-nos. além da precaução, o princípio da confiança.