Um teólogo (des)embrulhado na (p)an(d)emia (6)

Foto: Rui Saraiva

Por Alexandre Freire Duarte

Há uns meses atrás, alguém me disse que “um cristão deve sempre aceitar que a opinião dos outros está certa”. Numa mistura de expectativa e pesar, repliquei que “o aceitar sempre como certa a opinião dos demais é impossível”. A resposta não tardou: “É possível, sim senhor”. Calei-me. Fora um brilhante mas triste auto-xeque-mate.

Recordo esta ocorrência, pois estimo que já quase chegámos à “imunidade de grupo” face, não ao Covid 19, mas à verdade e às raízes cristãs inerentes a qualquer humanismo genuíno. Removidas tais raízes, os humanistas seculares – dos quais, às vezes, nós cristãos já não nos distinguimos – esmurram-nos os narizes (cf. Mt. 10,22). E fazem-no, lastimosamente, com as suas éticas diluídas no oportunismo. Éticas doentes, portanto, mas que tentam apontar: um sentido a partir do louvor ao sem-sentido; e segurança desde o elogio do próprio desespero. Dizemos que amamos a verdade, mas quando esta nos humildifica, acabamos por a torcer, a despir e até mesmo a enterrar. Nada de diferente, pois, do que fizemos há dois mil anos com a Verdade (cf. Jo. 14,6).

Os “pequenos-reis” ególatras e autocratas do mundo da “política” e das “celebridades”, que nos arrastam para crermos que também o devemos ser, vão nus. E vão-no, enaltecidos por fogos-fátuos que, apesar de sedutores, apenas encobrem que, enquanto sociedade, estamos a encaminhar-nos para um dos “picos da pandemia” da mais atroz irracionalidade. Um pico que, uma vez alcançado, dará razão a Deus quando Este disse, com sarcasmo céptico, que o hipopótamo era a Sua obra-prima (cf. Job 40,15-19).

Eis-nos, num correlato do apontado, entregues a todas as formas de hedonismo por cristianizar (cf. 1Pd. 4,3). Hedonismos que ignoram que Jesus não fez isto, ou aquilo, porque Lhe era mais prazeroso (nem, por sinal, mais doloroso), mas porque era o que a Sua missão de Deus-Messias Lhe pedia. Eis porque Ele esteve sempre envolvido em “problemas”: não por que os buscasse, mas porque ia onde precisava de ir para nos salvar, recusando anuir a tudo aquilo que nos estava a degradar, alienar, degenerar e demenciar.

Segui-Lo, implica, por conseguinte, discordar frontalmente do que está a ferir os demais, ao mesmo tempo que, desnudos do que nos afasta de Deus, os carregamos e abraçamos de um modo auto-sacrifical, pois, tal como referiu Rainer Maria Rilke em “Testamento”, «só pode viver nos abraços quem puder morrer neles». Ser cristão, na senda de Jesus – e não dos melífluos gurus modernos –, é ser pessoalmente inclusivo, mas exclusivo face a todas as mentiras que são arremessadas aos nossos irmãos, dilacerando-os (cf. Col. 2,8; 1Jo. 4,1). Não virmos a ser santos, não será aquilo de que, um dia, nos lamentaremos mais – será, sim, o não termos ajudado os demais a sê-lo.

Foi isto que levou Jesus a aceitar a Cruz do amor. Que triste é verificar que nós, de quando em vez e refugiando-nos numa pífia “tolerância” alheia ao Cristianismo, fugimos da Cruz. E dela fugimos, por termos receio das mortes parciais ao egoísmo que decorrem do amor. Aquele amor que nos prende numa explosão de liberdade, dado que, como disse com pristino atino Gerard Manley Hopkins em “A cotovia enjaulada”, «nunca um prado se sente encarcerado / sob um arco-íris que escolheu acolher».

O certo é que essas mortes não nos matam, nem aprisionam. Elas dão-nos a Vida e a Liberdade, permitindo-nos levá-Las a todos os padecentes que, proliferando nestes nossos dias de dores e perdas, mais d’Elas necessitam. Infelizmente, muitos de nós já não acreditamos nisso e muito menos o vivemos, possivelmente por estarmos rodeados por pessoas que, quando “ressuscitamos” os demais com o amor que lhes damos a viver, nos pagam «muito dinheiro» (Mt. 28,12) para, levando-nos a abdicar das nossas mais sólidas convicções, dizermos que, afinal, tudo não passara de uma falcatrua.