Sobre a Lei da Eutanásia recentemente aprovada

Voz Portucalense publica um texto redigido pelo Juiz diocesano do Tribunal Eclesiástico do Porto, Dr. José Joaquim Almeida Lopes.

 

A Lei da Eutanásia é inconstitucional por violação do dever fundamental do Estado de nada fazer contra a vida humana

Por José Joaquim Almeida Lopes, Juiz diocesano do Tribunal Eclesiástico do Porto

No dia 29.1.2021, a Assembleia da República aprovou, por maioria, um decreto, que passará a ser lei geral da República quando for promulgado pelo Senhor Presidente da República.

Porém essa Lei é materialmente inconstitucional por violação do artigo 24º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), na medida em que o Estado tem o dever fundamental de nunca violar a vida humana e o dever fundamental de tudo fazer para que a vida humana não seja violada por ninguém. Vamos demonstrar esta tese.

Na interpretação do artigo 24º, nº 1, da CRP, que diz a “vida humana é inviolável”, temos de atender ao seu texto e ao seu contexto, tendo em conta as circunstâncias em que essa norma foi elaborada. Temos de atender à sua letra e ao seu espírito. Somente podemos servir-nos dos trabalhos preparatórios dessa norma e da epígrafe da Parte I da CRP, segundo a qual se estabelecem os “DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS” dos Portugueses. O que é que os deputados constituintes quiseram dizer com a expressão “DEVERES FUNDAMENTAIS?

De facto, a CRP não tem, somente, direitos dos portuguesas, mas, também, o seu contraponto de deveres fundamentais. Onde está um direito fundamental está, no seu polo oposto, um dever fundamental. Se há o direito fundamental à vida humana, também há o dever fundamental de respeitar esse direito. De contrário teríamos de concluir que a palavra DEVERES era letra morta no texto constitucional. Ora, a lei não tem palavras inúteis!

Quando se fez a CRP, os vários partidos apresentaram os seus projetos de constituição. Mas somente o projeto do Partido Comunista falava nos DEVERES FUNDAMENTAIS, a par dos direitos, liberdades e garantias, conforme se via do Título III desse projeto (cfr. Diário da Assembleia Constituinte, doravante DAC, de 7.7.1975, página  280 (38)). Mais nenhum partido aludiu aos Deveres Fundamentais.

O Partido Comunista apresentou um segundo projeto, no qual insistia nos DEVERES FUNDAMENTAIS (DAC de 24.7.1975, p. 258-(41).

No seu segundo projeto, o então PPD – Partido Popular Democrático – hoje PSD, tinha como epígrafe do seu Título II a seguinte: “Dos direitos e DEVERES PESSOAIS”, no qual integrava o direito à vida no seu artigo 17º, dizendo que a mesma era inviolável (DAC de 24.7.1975, p. 358-(71)). Como eram deveres da pessoa e não do Estado, tratava-se de uma tutela mais branda do direito à vida.

No esquema geral de CRP, aparecia o desenvolvimento sistemático, com uma  Parte I subordinada ao tema DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS” (DAC de 25.7.1975, p. 580).

Numa proposta do Partido Socialista, a 2ª Comissão ficou encarregada de, na Parte I, tratar dos “DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS” (DAC de 25.7.1975, p. 583).

Nas propostas de sistematização da Constituição, o PCP manteve no Título III esta epígrafe: “Direitos, liberdades e DEVERES FUNDAMENTAIS”, enquanto o PPD/PSD, na Parte I, manteve como epígrafe “Dos direitos e DEVERES FUNDAMENTAIS DA PESSOA” e, no Título II manteve a epígrafe “Dos direitos E DEVERES PESSOAIS (DAC de 4.8.1975, pp. 634-(1) e 634-(2)).

Nos debates, o deputado MARCELO REBELO DE SOUSA, hoje Presidente da República, sobre os “limites dos direitos e liberdades”, disse o seguinte: “a defesa legítima da ordem democrática não se deverá alicerçar em conceitos tão vagos e arbitrários que arrisquem, pela sua execução concreta, a própria existência e exercício dos direitos e liberdades dos cidadãos” (DAC de 14.8.1095, p. 816). Estaria a referir-se ao conceito de “vida humana”?

Mas, depois, acrescentou: “não parece, por outro lado, difícil reconhecer que legislar constitucionalmente sobre direitos, liberdades e garantias, só por si, de pouco serve se não estiverem criadas as condições básicas de facto para que a consagração constitucional passe de mera letra morta” (DAC de 14.8.1975, p. 817). Ora, a Assembleia da República tinha o dever fundamental de criar as condições básicas de facto para que a vida humana não fosse violada. Ao invés, foi ela mesma que, com a aprovação da lei da eutanásia, violou o direito fundamental à vida humana, criando condições para a morte e não condições para a vida.

O deputado do PCP, VITAL MOREIRA, também foi no mesmo sentido, ao dizer o seguinte: “para que essas liberdades não fiquem limitadas no seu conteúdo efetivo são necessárias duas coisas: primeiro, que a Constituição consagre expressamente garantias do seu exercício por parte das massas populares; segundo, que as liberdades sejam consideradas não apenas como direitos à abstenção do Estado, mas também como direitos a uma ação positiva do Estado. Na falta disso, o catálogo constitucional das liberdades corre o risco de não ser mais do que uma ilusão para o povo” (DAC de 16.8.1975, p. 845). E, com efeito, assim é. Limitar a vida humana não o pode fazer o Estado ou as pessoas. O Estado tem o dever fundamental de se abster de violar a vida humana e tem o dever fundamental de ter uma ação positiva a favor da vida humana. A nova lei da eutanásia torna o direito há vida humana numa ilusão para o povo. Dizer, no artigo 24º, nº 1, que “a vida humana é inviolável” tornou-se uma ilusão para o povo, tal como já tinha acontecido com a lei do aborto. Com o devido respeito, só um cego não consegue ver isto!

Não podemos esquecer que foi o deputado VITAL MOREIRA quem escreveu que a “vida humana é inviolável”, no artigo 30º, nº 1, do primeiro projeto do Partido Comunista Português (DAC de 24.7.1975, p. 358-(41)). E, daí, passou para a letra da CRP até aos nossos dias. O projeto do PPD, dizia, no seu artigo 17º, nº 1, que “o direito à vida e à integridade física é inviolável” (DAC de 9.7.1975, p. 296-(3). O artigo 12º, nº 1º, do projeto do CDS dizia que “constituem direitos e liberdades individuais do cidadão português … o direito à vida e à integridade física” (DAC de 7.7.1975, p. 280-(3)). O artigo 11º, nº 1, do projeto do PS dizia que “é garantido o direito à vida e à integridade física” (DAC de 7.7.1975, p. 280-(53)).

Como dizia o nosso saudoso professor de Direito Constitucional, Doutor ROGÉRIO GUILHERME HERARDT SOARES, a outro propósito, o direito fundamental à vida humana tornou-se uma “casca vazia”. É uma expressão que não passa do papel, não chegando a entrar na vida das Instituições e do nosso Povo.

O deputado do PS, JOSÉ LUÍS NUNES, afirmou que “o exercício no direito contém em si próprio as suas limitações” (DAC de 16.8.1975, p. 843). Quer dizer, o direito à vida contém em si mesmo a limitação da violação desse direito. Assim, a um direito corresponde um dever de não violar esse direito.

O deputado do PPD, MANUEL DA COSTA ANDRADE, hoje presidente do Tribunal Constitucional, grande constitucionalista e insígne penalista por excelência, disse o seguinte nos debates, a propósito dos “Direitos e Deveres Fundamentais: “As liberdades propriamente ditas, que conferem ao cidadão um poder de agir e impõe ao Estado uma abstenção” (DAC de 20.8.1975, p. 871). É mesmo assim: quando o Estado reconhece na sua Constituição o direito natural à vida, a ponto de a considerar “inviolável”, está a criar para si um dever de abstenção para não limitar esse direito inviolável.

Posto à votação o atual artigo 24º, nº 1, da CRP, que diz “A VIDA HUMANA É INVIOLÁVEL”, foi o mesmo aprovado por unanimidade dos deputados de todos os partidos (DAC de 27.8.1975, p. 1009).

Em declaração de voto do PPD, o deputado BARBOSA DE MELO disse que “é com a consciência viva de estarmos com uma nobre e generosa linha da nossa tradição humanista que votámos o nº 1 e o nº 2 do artigo 13º do projeto da comissão”, dizendo, logo a seguir que “ao proclamarmos que a vida humana é inviolável e que em caso algum haverá pena de morte, dissemos claramente que cada homem, tal como é, mesmo o criminoso, não tem preço, não pode ser mercadejado seja a que pretexto for” (DAC, p. 1009). Ora, ao aprovar a lei da eutanásia, a Assembleia da República quebrou a nossa tradição humanista e mercadejou o homem, só porque o sentimento ou a emoção da maioria dos deputados falou mais alto do que a RAZÃO e do que a CONSTITUIÇÃO.

Para usar a lógica de G. JELLINEK, o dever fundamental do Estado de respeitar o direito natural à vida desdobra-se num duplo dever: “status negativus ou libertatis”, nos termos do qual o Estado nada deve fazer para limitar o direito a vida, e o “status  positivus ou civitates”, segundo o qual o Estado tudo deve fazer a favor do direito à vida, criando as condições necessárias à vida e não à morte.  Alude, ainda, ao “status activae civitatis”, como um dos três “status” diferenciados.

Ora, o Estado Português, por meio da sua autoridade legislativa, deveria abster-se de violar o direito à vida.

Neste sentido e sobre “DEVERES FUNDAMENTAIS”, pode ler-se o artigo do Prof. JOSÉ CASALTA NABAIS,  na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 148º, pp. 348 e seguintes.

Em conclusão: ao aprovar a lei que permite a eutanásia, o Parlamento português violou o seu dever fundamental de nada fazer contra a vida e o seu dever fundamental de tudo fazer para que  o direito à vida não seja violado.

Só assim a epígrafe da Parte I da Constituição – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS” – faz sentido e se respeita.

Das várias formas de morrer – ortotanásia (morte direita ou morte natural ou acidental), eutanásia (boa morte ou morte doce e fácil) e distanásia (morte mais lenta, por encarniçamento terapêutico), a CRP somente admite a primeira. Também a religião católica somente admite a ortotanásia, tendo o Papa S. JOÃO PAULO II recusado, em si próprio, a distanásia. Eutanásia vem do grego “euta”, que quer dizer morte boa, doce e fácil; distanásia vem do latim “distendere”, que quer dizer morte estendida, distendida, dilatada ou lenta; ortotanásia vem do grego “orto”, que quer dizer direito.

Acreditamos que a Constituição vincula todos os poderes do Estado, a começar pelo “primeiro poder”  da Assembleia da República, na linguagem do Abade de SIEYÈS. O Estado subordina-se à Constituição e a validade das leis depende da sua conformidade com a Constituição (artigo 3º, nºs 2 e 3 da CRP). Todos temos o direito e o dever ao respeito pela nossa dignidade de pessoa humana, nos termos do artigo 1º da CRP. Dignidade da pessoa humana é a dignidade de filhos de Deus, como a definiu o Concílio Vaticano II. Dignidade da pessoa humana é  considerar cada ser humano como um fim em si mesmo, e nunca como um meio ou objeto ao serviço de outros fins (acórdão nº 225/2018, do Tribunal Constitucional, publicado na I Série do Diário da República de 7.5.2018).  Como dizia KANT, procede sempre de tal maneira que possas considerar a humanidade, tanto em ti como nos outros,  como um fim e nunca como um meio.

Há limites derivados da dignidade humana, pois quando a dignidade assenta sobre a base ontológica da pessoa, não somente exclui os ataques que possam provir de terceiros, mas também os que proveem do próprio sujeito (cfr. Diccionario General de Derecho Canónico, vol. III, Universidad de Navarra e Thomson Reuters, 2012, página 318). Todos somos iguais no concernente à dignidade, devido à nossa regeneração em JESUS CRISTO (cânone 208 do Código de Direito Canónico).             TODOS TEMOS O DIREITO DE VIVER E NINGUÉM TEM O DIREITO DE MORRER, pois ninguém pode dispor da sua vida. A vida não está à venda!

DEUS QUE TE CRIOU SEM TI NÃO TE PODE SALVAR SEM TI”!

Porto, 30 de janeiro de 2021