
Voz Portucalense publica na íntegra.
Saudação aos Consagrados
“Não nos ardia o coração quando Ele nos falava”?
Caras e caros Consagrados que servis a Deus e aos irmãos na área da nossa Diocese do Porto,
todos os anos, comemoramos o vosso «Dia» quando a Igreja celebra a Apresentação do Senhor no templo. Nessa altura, costumo participar em qualquer gesto que assinale a efeméride. Este ano, por motivos que sabemos, faço-o por intermédio desta mensagem.
Quando pensava no que escrever, vinha-me à mente o episódio bíblico dos discípulos de Emaús. Depois de terem acompanhado o Senhor, de lhe oferecerem refeição e dormida, de O reconhecem no gesto da «fração do pão», voltaram a deixar de O ver. É nessa altura que um desabafa com o outro: “Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32). E voltaram para Jerusalém para testemunharem aos Onze Apóstolos a certeza da ressurreição.
Estes dois discípulos, de alguma forma, representam toda a humanidade, em caminho pela vida, carregando consigo desencantos e angústias, medos e desilusões. Faz do coração o centro nevrálgico da existência. Mas, ao longo da maior parte dos dias, sente tratar-se de um coração acabrunhado. Porquê? Porque é um coração que bate apenas impelido pela sua autossuficiência, chamado somente a mover os pés que tocam o chão, não aberto ao mistério e, como tal, sem sonho nem especiais ânsias.
Esta humanidade a caminho carece, portanto, de um viajante que a acompanhe, lhe refira os grandes mistérios, lhe fale do incompreensível, lhe aponte uma direção, pois é daí que as pernas recobram vigor, a existência readquire sentido, a caminhada se torna simpática e o coração se inflama de alegria. É daí que a vida se torna humana e se vislumbra uma meta que acalenta a esperança.
O Senhor ressuscitado confiou esta tarefa a todos os que creem no seu Nome. Mas, no presente momento da história, é aos Consagrados que se pede disponibilidade total para acompanharem o mundo em peregrinação vinte e quatro sobre vinte e quatro horas por dia. Se o não fizermos, muitos, ao longo de toda a sua existência, vão desconhecer uma mão amiga pousada sobre os seus ombros, uma palavra de consolação e doçura que saborearão ainda mais que a melhor das músicas, uma ternura que derreta a crosta de gelo que lhe cobre os sentimentos, enfim, aquelas simpatia e proximidade que fortalece o músculo cardíaco mais que qualquer produto químico ou biológico.
O relato a que me estou a referir assenta em três momentos nucleares e interligados: explicação das Escrituras, convite bondoso para a refeição e alojamento e celebração da Eucaristia. E é dos três –da evangelização, da caridade e da liturgia- que resulta a vontade do anúncio, regressando a Jerusalém para confirmar os Onze na fé.
Nos vossos carismas, verdadeiros dons que o Espírito concede à Igreja e à humanidade, é lícito e lógico que se privilegie algum deles. Por isso, temos contemplativos que vivem, sobremaneira a liturgia, e ativos que se dedicam às obras de misericórdia; missionários que anunciam a verdade da Escritura e membros de sociedades de vida apostólica ou institutos seculares que fermentam a história pela proximidade aos âmbitos que a constituem. Tudo isso é lícito, tudo isso é enriquecedor. Mas com uma condição: que não se ignore nenhum dos outros núcleos que formam o ser da Igreja.
Sim, em nome da liturgia, os contemplativos não podem ignorar a evangelização e a caridade; não obstante o bem a fazer, os ativos têm de alimentar a sua ação na Palavra recebida e transmitida e na oração intensa; os missionários só o serão com a mística e com a caridade; os presentes no mundo só não «serão do mundo» quando firmarem os pés nas arquitraves que suportam a nossa fé. Saber conciliar estas dimensões é dom da sabedoria que só o Espírito concede.
A nossa Igreja do Porto está-vos agradecida pelo muito que lhe tendes dado. Mas pede-vos: continuai a conciliar evangelização, caridade e liturgia, pois todos somos membros de uma Igreja bela no seu corpo orgânico e não disforme ou reduzida a uma única função.
Saúda-vos o vosso irmão,
+ Manuel, Bispo do Porto