Um teólogo (des)embrulhado na (p)an(d)emia (5)

Foto: Rui Saraiva

Por Alexandre Freire Duarte

Esteve frio. Muito frio. Tanto frio que, quando há dias fui buscar o meu filho à creche, revestido de três polares e três casacos com capuzes bem aconchegados ao meu corpo, me perguntaram: “O que faz um esquimó por aqui?” Imagino que terá sido esse mesmo frio que, para prejuízo de uma boa audição do meu interpelador, me fez ser lento a responder: “Pesquisas acerca da desflorestação das árvores de queijos no Porto”.

Vem isto a propósito daquele frio da descristianização acelerada que, fruto da pandemia que nos está a trespassar, muitas pessoas abatidas estimam ser inevitável. Embora compartilhe certos pontos de vista e preocupações com algumas dessas pessoas, não estou tão certo quanto à inevitabilidade desse desfecho.

É certo que há quase 50 anos, Joseph Ratzinger disse que, na Europa, a Igreja iria encaminhar-se para ser um “pequeno rebanho” na linha do “resto de Israel” (cf. Sf. 3,13). É possível que isso ocorra. Não obstante, isso não deve ser tido como um lastimoso sinal fatídico face àquela certeza que também foi cantada por Tagore: «Lamentei-me muitas vezes, / com a alma absorta. / Mas as melodias têm sempre a mesma letra: / “Ele [Jesus] vem, vem, vem, Ele vem sempre”».

Porventura o Senhor já não venha como antanho; talvez até venha pelos pregoeiros da ética tufada; quiçá venha por caminhos que já (ou ainda) não trilhamos; possivelmente até venha ao som de novos galos (cf. Mt. 26,69-75) e através de pessoas que acham que Ele devia ter usado, na Grande Ceia, bolachinhas em vez de pão; etc. Mas está sempre a vir (cf. Ap. 22,20). Saibamos acolhê-Lo, sem retraimentos e vivendo nas fronteiras a partir do Centro (mas não ao contrário), pois é sem nenhuns retraimentos que Ele – sendo esse Centro – nos abraça onde quer que estejamos.

Não nos verguemos à ditadura do medo, antes “arregacemos” as nossas “mangas” e, com o nosso coração carnificado e espiritualizado (cf. Ez. 36,26s), façamos o que nos compete na linha do melhor e mais alegre amor de que formos capazes. E façamo-lo também porque, mesmo sentindo-nos inseguros, sabemos que, dessa maneira, estaremos a anunciar esse mesmo Senhor. Talvez já nos tenhamos esquecidos de que “há” cinco Evangelhos Canónicos. Mas é verdade. E a maior parte dos nossos contemporâneos só lerá o quinto: a vida de todos nós que, unidos Àquele, constituímos a Sua Igreja.

Deus colocou neste Mundo em que vivemos sinais suficientes para que a nossa razão chegue à constatação da Sua realidade (cf. Rm. 1,19s). Todavia, não os colocou numa quantidade tal que o coração consiga ser aquietado pelo conhecimento assim obtido. É preciso mais. Mais, para que o mesmo aquiete-se; mais, numa sã aliança entre fé e doutrina, para que tal fé não mude o seu foco do Deus-Amor para o deus-amora. Uma aliança a ser atestada pelas nossas vidas que, em articulação com aquelas aclarações de que não podemos prescindir, devem poder atrair e serem testemunhas de uma existência reveladora de um coração que vive a pulsar um humilde e coerente poder explanatório das grandes questões da vida (cf. 1Pd. 3,15).

Fujamos deste vírus, mas não das pessoas que, devido a ele, mais precisam de nós; e garantamos, com compaixão e criatividade não imunizadas, que numa lágrima, de todo aquele que esteja (mesmo sem o saber) com Cristo partido no seu coração e tal como disse Blaise Pascal, «há mais Deus do que água». Que o nosso olhar, os nossos dedos e tudo o mais em nós gritem que Jesus não nos chama senão à Vida no Amor. Que eles gritem, agora nas palavras do poeta medieval escocês William Dunbar, algo como: «Não desanimes. / Por favor: não desalentes. / Cada dia é um novo e propício começo. / E não estás só, pois eu e Deus queremos-te».