Livraria Lello, um ícone do Porto, um percurso cultural

Por M. Correia Fernandes

Quem, nos anos anteriores a 2019 passava a qualquer hora do dia junto ao edifício da Reitoria da Universidade do Porto, e com a Torre dos Clérigos ao fundo, descendo a rua dos Carmelitas, frente ao seu número 144, invariavelmente se deparava com grandes filas de turistas, em variados adereços, do honrado clássico ao juvenilmente avançado, da pasta professoral à mochila viageira, contemplando e esperando o ingresso no edifício da Livraria Lello & Irmão, na sua fachada de Arte Moderna, projetada no céu soalheiro ou baço da cidade, naquela zona onde os belos edifícios de granito constituem um ícone da cidade, apesar de os terem envolvido no cimento da praça fronteiriça, onde antigamente funcionava o Mercado do Anjo (desde 1839), depois a Praça de Lisboa e atualmente uma moderna urbanização de teto ajardinado de relva e oliveiras, lembrando certamente a histórica Porta do Olival, ali ao lado.

Segundo lemos no portal “Notícias do Porto”, era inaugurado em 13 de janeiro de 1906, cumprindo-se agora 115 anos, aquele que hoje é considerado monumento de interesse público, sede da Livraria que simplificadamente de chama Lello, e que foi considerada, em 2008, pelo jornal inglês The Guardian como uma das mais belas do mundo, e, em 2011, “uma pérola de arte nova” pela editora de guias de viagens Lonely Planet.

Agora anuncia-se uma  remodelação a partir do número 148 dessa rua, com um projeto do Arquiteto Álvaro Siza Vieira, um arranjo urbanístico que permitirá uma nova ligação à própria Livraria, facilitando a circulação de pessoas entre os dois edifícios e o usufruto dos seus espaços dedicados à fruição cultural.

Ainda segundo o portal “Notícias do Porto”, o projeto constituirá “um edifício com alma própria”, “dedicado à cultura” e “com diferentes valências, contribuindo para aumentar a oferta cultural e turística da cidade”. A criação deste novo espaço pretende “oferecer uma experiência mais qualificada a leitores e visitantes, aumentar a oferta cultural, partindo do livro, tendo alma e um programa próprios”.

Da notícia à história

Esta é notícia auspiciosa, já que, segundo a presidente do Conselho de Administração da Livraria Lello, Aurora Pedro Pinto, a requalificação daquele edifício “é a realização de um sonho” e significa “um investimento não só na Livraria Lello, mas também na cidade”, que trouxe à memória não apenas as muitas vezes que ao longo dos tempos entrávamos naquele espaço livreiro, subíamos ao andar de cima, ali ouvíamos apresentações de livros ou diálogos culturais, escutando as palavras e perscrutando com o olhar os títulos e as imagens dos livros. Esta notícia, dizia, lembrou-se a tarefa editorial daquela Livraria, essencialmente em duas dimensões.

1.Um projeto designado “Obras Primas da Litteratura Portuguesa”, com a “Nova Edição completa” dos “Sermões” do Padre António Vieira, “edição popular em 15 volumes, cuidadosamente revista e impressa sobre a primeira edição comprehendendo toda a obra oratória do genial pregador”. E acrescentava: “Toda a obra oratoria de VIEIRA será incluída nesta publicação, que constará de 15 volumes de 400 a 500 paginas cada um, impressos em bom papel e typo novo”. A aquisição podia fazer-se “por assignatura”, sendo que cada volume brochado custava 500 reis e encadernado 700 reis. O projeto afirmava que “depois de completa será augmentado o preço dos volumes, não se vendendo estes separadamente”. Propunha-se “um volume todos os mezes”, com “Assignatura e venda em todas as livrarias de Portugal e Brazil”. A edição assinalava: LIVRARIA CHARDRON – Lello & Irmão, Editores, Carmelitas, 144. O primeiro volume trazia a data “Porto, 1907”. A seguir ao título acentuava: “Pregador, ou S. Paulo ou Vieira”, D. Luiz de Souza, Arc. De Braga.

Quem era o autor deste grandioso e ousado projeto editorial? O frontispício do volume I assinala: “Prefaciado e revisto pelo Rev. Padre Gonçalo Alves”. Apresentava-se uma imagem desenhada do Padre Vieira e uma vinheta ex-libris da Livraria com a afirmação DECUS IN LABORE” (Elegância no Trabalho).

Em “Duas Palavras de apresentação” (que na realidade ocupavam 37 páginas) o autor citava opiniões de eruditos desde o séc. XVIII, entre os quais nomes como Pinheiro Chagas, Tomás Ribeiro, e o Padre Senna Freitas, além de testemunhos de autores estrangeiros sobre a oratória de Vieira. Outras 30 páginas são dedicadas à vida do autor, assinada pelo P. Gonçalo Alves. A partir do n.º 3, começou a anunciar-se a publicação da Nova Floresta, do Padre Manuel Bernardes, também em “Publicação por assignatura”.

A magnitude deste projeto só foi continuada com os 30 volumes das Obras Completas do Padre António Vieira, recentemente publicadas pelo Círculo de Leitores. Este projeto de edição da Livraria Lello no início do século XX foi apenas o início de uma ampla atividades de edição de escritores portugueses, já que a Livraria Editora, ao contrário do que sucede hoje, se empenhou em divulgar os escritores nacionais, contando também com o mercado brasileiro.

Assim, podemos encontrar em 1959 a reedição em papel bíblia, dos Sermões, incluídos num projeto de “Obras completas do Padre António Vieira”, “prefaciados e revistos pelo Padre Gonçalo Alves, com a ortografia atualizada. Agora apresentam já como editor “Lello & Irmão – Editores, mas com a mesma foto e a mesma sigla.

Mais tarde aí podemos encontrar, entre outras no mesmo estilo, as “Obras Completas” de Eça De Queiroz” em dois volumes (1979), ou as “Obra de Júlio Dinis”, também em dois volumes (1990), além da Obras Completas de Fernando Pessoa (1986) ou de Camilo Castelo Branco (18 vols!), ou de Gil Vicente (1965) e Camões (1990).

Assim, enquadrando a nova dimensão da Livraria, fica esta resenha da lição do passado.