
Por M. Correia Fernandes
A lição dos Estados Unidos
Fomos surpreendidos, o mundo foi surpreendido, pela notícia da invasão por apoiantes de Donald Trump do edifício do Capitólio dos Estados Unidos da América, por ocasião da contagem oficial e do reconhecimento e declaração da vitória de Joe Biden como futuro Presidente da Nação Americana e dos seus 50 Estados.
É um facto triste e simbólico: a conhecida e reafirmada atitude de Trump de não reconhecer o resultado da eleição, sob o pretexto de fraude, embora tenha sido assaz claro em favor do adversário democrata, constitui um precedente semelhante a outras atitudes de candidatos perdentes ou socialmente contestados, especialmente na América Latina, como o caso da Venezuela.
Para o prestígio dos Estados Unidos, que se ufanam do funcionamento das suas estruturas democráticas, este acontecimento é um golpe de grande negatividade, que nos faz pensar que, quando a ambição do poder se torna obsidiante, se utilizam todos os processos para impedir a sua perda. Lembre-se que na eleição anterior, Donald Trump vencera a eleição, segundo o processo eleitoral americano, que apenas é maioritário pelo número de delegados diretamente eleitos por Estado, a opositora democrata, na altura Hilary Clinton, obtivera mais cerca de três milhões de votos que Trump, e no entanto aceitou a vitória do seu opositor, dentro dos parâmetros legais. Lembra-se que Hilary Clinton obteve 65 853 516 (48%) votos e Donald Trump 62 984 825 (46%). Porém o número de delegados estaduais, designados “grandes eleitores”, foi de 304 para Trump e de 227 para Hilary. O que deveria fazer repensar o modelo de representatividade dos cidadãos.
Nesta eleição de 2020, Donald Trump obteve 74 223 744 (46,9%),e Joe Biden obteve 81 283 485 votos (51,4%), mais quase mais 7 milhões de votos. Foi o maior número de votos obtido por um Presidente eleito e também o maior número obtido por um candidato preterido, o que denota a elevada participação do eleitorado. Em número de delegados, Biden obteve 306 (mais 2 que Trump em 2016) enquanto Trump obteve 232 (mais 5 que Hilary em 2016).
Esta é uma forma de agir que deve pôr o mundo de sobreaviso para os processos de mobilização das populações de menos capacidade de reflexão e de menor espírito democrático, a que ultimamente se tem vindo a dar o nome de populismo. A irracionalidade das multidões, cultivada pela ambição e ânsia do poder, e instigada pelo líder, torna-se terreno fértil para tal tipo de ações, que conduziram mesmo a mortes, ao menos uma confirmada. Em face dos acontecimentos, o próprio D. Trump acabou por aconselhar os seus insensatos seguidores a desmobilizarem-se e não perturbarem a tomada de posse do Presidente eleito, a acontecer em 20 de janeiro de 2021.Donald Trump procurou fundamentar as suas acusações de “fraude eleitoral” em fundamentos como o voto antecipado, ou o voto por correspondência ou a deficiente contagem, processos analisados pelas instituições competentes, que concluíram pela ausência de fraude na obtenção e de erros ou enganos graves na contagem, validando oficialmente a eleição, cujo ato formal de reconhecimento foi interrompendo pela invasão do Capitólio em 6 de janeiro, através das causações de fraude, que as instituições competentes analisaram e verificaram não terem acontecido, para contestar a eleição de Joe Biden.
Em face do acontecido, o Presidente eleito falou de caos e sedição. A acusação de fraude foi analisada e rejeitada pelos Tribunais dos diversos Estados. Custa a crer que o homem que dirigiu o país nos últimos quatro anos tenha enveredado por um caminho como este, que não augura nada de bom na sua ação futura. O seu poder de influência era suficiente para o êxito da sedição. Houve quem falasse de “quase golpe de Estado” (Público, 8 de janeiro), e que Trump perdeu a nação.
Porém o carácter exemplar e a influência social, cultural e mediática, para além da força económica, que os Estados Unidos da América exercem sobre o mundo inteiro tornam mais dramática a situação. Este é um exemplo de negatividade absoluta. Todo o acontecimento induz uma dinâmica de descrédito nos valores democráticos americanos.
Poderá ser que o seu carácter exemplar possa agitar as consciências dos cidadãos do mundo para os valores do respeito mútuo, da cidadania e da paz social? Eis a questão.
A campanha eleitoral em Portugal
Tem vindo a decorrer a campanha eleitoral para a Presidência da República em Portugal. Este ano, à falta dos tradicionais comícios promovidos por partidos ou apoiantes, decidiu-se que a campanha adquirisse uma maior presença nos meios de comunicação, essencialmente as televisões e as rádios. O facto conduziu a uma proliferação de debates, para os quais houve tempos definidos e regras estabelecidas. Para além do indispensável (dizem) carácter afirmativo e cada candidato, tem-se registado também o carácter abusivo de alguns “moderadores” imoderados, que se sobrepõem ao diálogo dos candidatos e opinam sobre as opiniões.
Temos defendido que a eleição para Presidente da República em Portugal não necessitaria de se realizar por sufrágio direto, como no editorial de 20 de janeiro de 2016, que aqui nessa parte relembramos:
Agora que se aproximam as eleições para Presidente da República, parece que a sociedade portuguesa e as suas representações deveriam pensar em rever o sentido da escolha do Presidente. O que tem vindo a acontecer neste processo eleitoral manifesta claramente a falha do sistema ou de quem o usa. A eleição presidencial transformou-se num esquema utilizado por candidatos, não para falar da Presidência e sua missão, mas para falar de projetos pessoais e de evidenciar à opinião pública propostas alheias à ação presidencial. Por outro lado, a atuação dos candidatos tem vindo a revelar mais as suas fragilidades e limitações do que as reais qualidades de cada um para a governação. Tem revelado mais confrontos do que propostas de valores humanos e projetos sociais sábios.
Há que repensar o sentido da eleição presidencial. Não pode ser apenas um pretexto de campanha ou de propaganda política. O nosso sistema semi-presidencialista, como lhe chamam, originou uma espécie de semi-candidatos para uma semi-eleição. A função presidencial da nossa Constituição não justifica uma eleição por sufrágio universal. Um colégio eleitoral criterioso daria mais dignidade ao ato e evitaria custos pessoais, económicos e sociais para o país e para os cidadãos. E talvez mesmo salvaguardasse melhor e vontade popular.
A campanha eleitoral para as eleições deste ano segue o mesmo esquema. As diatribes substituem os projetos de ação. Os ataques pessoais evidenciam conflitos inúteis. O equilíbrio das propostas possíveis fica enrolado e perdido nos confrontos pessoais e partidários latentes.
Neste ano de pandemia, ganha mais razão a propostas:
Um colégio eleitoral criterioso daria mais dignidade ao ato e evitaria custos pessoais, económicos e sociais para o país e para os cidadãos. E talvez mesmo salvaguardasse melhor e vontade popular.