
Por Ernesto Campos
“Os homens foram criados para se ajudarem mutuamente.”
Séneca, escritor séc. I
Na mensagem para o Dia Mundial da Paz, o Papa Francisco usou a palavra gramática por analogia, querendo dizer “livro em que se expõem as regras de uma arte ou ciência” etc. (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coord. José Pedro Machado, Círculo de Leitores, 1991), regras que a gramática do cuidado define claramente: “a promoção da dignidade humana, a solidariedade, o bem comum, a salvaguarda da criação”. O livro que explicita estas regras é a Doutrina Social da igreja e, mais primariamente, poderíamos, mesmo, dizer que se traduzem em dar de comer a quem tem fome, dar pousada aos peregrinos, ensinar os ignorantes, perdoar as injúrias… O catecismo chama-lhes obras de misericórdia, sendo certo, porém, que para serem verdadeiramente misericordiosas, deverá animá-las o espírito cristão, isto é, um suplemento de alma que vai além do cumprimento do dever. Com efeito, dar de comer a quem tem fome ou acolher os migrantes são deveres e, antes de mais, direitos inerentes à dignidade da pessoa humana. Compete, pois, ao chamado estado social assegurá-los redistribuindo os bens materiais e espirituais cujo destino é universal, porque somos todos irmãos.
O Estado vai dando, agora, alguma atenção ao chamado cuidador informal, com um estatuto que lhe outorga alguns benefícios. É um dever de justiça, sem dúvida. Curiosamente, parece ter tido escassa adesão. De facto, quem assume a tarefa de cuidar de outrem – o marido ou a mulher que cuida do cônjuge ferido de doença degenerativa, a mãe que cuida do filho deficiente ou doente – tem em vista apenas reconstruir o bem-estar do outro até ao limite do possível. E, com isto, alegrar-se, em consonância com o que o Papa propõe e que é bem mais do que justiça social. É a cultura do cuidado, “uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade para erradicar a cultura da indiferença que hoje, muitas vezes, parece prevalecer.”.
Esta cultura do cuidado radica num contexto que suscita, mesmo, questões como: há uma ética do cuidado?, cuidar de alguém é uma virtude?. Um autor como José Manuel Beato (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra) responde deste modo: “se por “cuidado” entendermos a faculdade de “preocupar-se com” (…), associada à capacidade de “encarregar-se de” (…), conducentes a atividades de exercício do “cuidar de” (…) , estamos seguramente ante uma disposição afetiva e volitiva articulada com uma sabedoria prática que visa uma capacidade de ação eticamente relevante, em tudo semelhante a uma “virtude”.”. Não se trata aqui, portanto, de cuidado de si, de cuidado consigo mesmo mas de dedicação altruísta, como se entende na linguagem de hoje.
Cuidar de alguém é, antes de mais, um dever de justiça na relação eu-tu, pessoa a pessoa e é uma exigência a fazer ao Estado social. No pensamento do Papa Francisco, a cultura do cuidado vai, todavia, mais longe, tem um objetivo pragmático: criar hábitos pessoais e coletivos que correspondam a regras permanentes de comportamento, como prática básica necessária para a sobrevivência dos entes queridos, estendendo-a a estranhos e ao mundo. Expressões, afinal, da virtuosa gramática do cuidado: dignidade, solidariedade, solicitude, bem comum, salvaguarda da criação.