
Por Ernesto Campos
“Da acumulação de erros (na medicina) saíram, com o decorrer dos tempos, algumas verdades.”
Marcel Proust, escritor séc. XIX-XX
A síndrome respiratória aguda e severa (SARS) que este vírus coronário nos trouxe parece poder vencer-se com uma vacina adequada. É uma questão de saúde pública que arrasta um problema complexo de natureza ética no plano individual, social e político.
A vacinação não vai ser obrigatória e é gratuita, mas poderia ser compulsiva quando a recusa pusesse gravemente em causa a saúde de terceiros. Não se fica por aqui a complexidade do problema: há vacina para todos que a queiram? A escassez de vacina implica prioridades; quem? Os mais vulneráveis e frágeis ou os que maior probabilidade de bom sucesso oferecem? Os primeiros serão os mais necessitados, mas estes são os mais úteis. Que confiança merecem as diversas vacinas de que se fala, em termos de eficácia e validade temporal e quanto a riscos e efeitos adversos?
A informação oficial e genérica dir-se-á que é tranquilizadora, mas sendo genérica, e não raro confusa, não é informação bastante nem da parte do emissor nem da parte do recetor. Na sua autonomia (princípio básico incontornável a respeitar) o recetor deve ter condições para um assentimento livre e esclarecido; isto exige informação completa expressa em linguagem clara e acessível prestada num clima de mútua confiança. Só assim o paciente estará apto a ponderar a informação recebida para decidir e, eventualmente, concretizar o seu assentimento livre e esclarecido em consentimento informado, traduzindo este expressamente a sua vontade, como prova concreta necessária.
No atual estado da arte e do conhecimento sobre esta pandemia não se trata de procedimento de rotina como a sazonal vacina da gripe, que implicaria apenas risco mínimo, neste caso ainda não inteiramente garantido e em que bastaria o consentimento tácito e presumido. A situação exige o consentimento informado, presencial ou por via telemática escrito ou oral.
Não está em causa a presunção de falta de honestidade deontológica do profissional de saúde. Diríamos que o consentimento informado é expressão da incontornável autonomia pessoal. E é igualmente manifestação da cultura do relacionamento humano como hoje o concebemos. Um certo paradigma tradicional distribui desigualmente o poder na relação eu-tu; o poder do ter, do saber, da força, do agir, da autoridade impõe-se do eu sobre o tu acentuando exageradamente a dependência deste, porventura com a melhor das intenções – fazer bem. É princípio da beneficência. Neste nosso tempo, porém, a afirmação da dignidade da pessoa vai definindo com contornos cada vez mais nítidos o direito à auto-realização humana, abrindo-se a um novo paradigma de relacionamento. O princípio da beneficência, por muito respeitável, não exclui o poder-dever de o dependente, como pessoa autónoma e livre, participar ativa e conscientemente nas decisões que lhe dizem respeito, como instância última.
Outra questão ainda de natureza ética: primeiro, foram os EUA, depois o Reino Unido, depois o continente europeu a açambarcar, o mais possível, da produção de vacinas. E os países pobres? Também a nível internacional, neste terceiro milénio, se impõe um novo paradigma de relacionamento. Como diz João Paulo II “é preciso encontrar caminhos para não comprometer o fundamental direito dos povos à subsistência e ao progresso”; à saúde.