
Publicamos aqui a homilia do bispo do Porto, D. Manuel Linda, pronunciada na Missa do Dia de Natal numa celebração na Catedral do Porto.
A luz e a vida em tempo de eclipse
Celebramos este Natal com aquela tensão bipolar que tantas vezes caracteriza a vida do mundo e a nossa própria existência: com fé e receios de participar na Eucaristia; com os mais belos cânticos litúrgicos, mas apenas interiormente trauteados; com desejos de proximidade e cuidados de prudência; com a vontade de, ao menos uma vez por ano, sermos mais família e nem sequer podermos estar todos à volta da mesma mesa; com alegria pelo nascimento de Jesus e com desagrado por aquilo que vemos no mundo; com esperança, mas também com temor; com festa, mas com uma nódoa típica deste tempo de penumbra.
Se não fôramos obrigados a isso pelas circunstâncias, haveria nisto alguns aspetos positivos a ressaltar: um clima de maior interioridade pessoal e intimidade familiar, quando, de facto, nos últimos tempos, “o consumo sequestrou o Natal” e este estava a tornar-se uma terrível exterioridade, mais um dado de comércio e fonte de stress do que propriamente o núcleo religioso donde arranca toda a obra de salvação do nosso Deus; e também a tomada de consciência da nossa fragilidade, pressuposto para entendermos a fragilidade acrescida de tantos outros e nos voltarmos para eles, seja qual for a nossa condição económico-social, tal como fizeram com o «frágil» Jesus os pobres pastores, os remediados habitantes de Belém e os riquíssimos reis do Oriente.
Mas talvez esta tensão nos permita compreender melhor aquela outra tão presente na página do Evangelho que escutamos. São João resume-a magistralmente ao referir a luz que “brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam” (Jo 1, 5), que é a forma de dizer que o Salvador “veio para o que era seu, mas os seus não O aceitaram” (v. 11). Com olhar de águia, o evangelista dá-se conta de que o Verbo, o indizível nome de Deus, não veio ao mundo somente para falar do Pai ou para iluminar e guiar a humanidade na direção da Divindade, mas para comunicar às pessoas a própria vida divina para que, n’Ele e com Ele, nos tornemos filhos de Deus.
Claro que isto coloca a pessoa numa alternativa: decido-me por Deus ou rejeito-O? A resposta ou decisão tem consequências. Aceitá-l’O é aceitar a salvação, descrita em termo de luz e de vida: “N’Ele é que estava a Vida e a Vida era a Luz dos homens” (v. 4). É ser filho de Deus. Recusá-l’O é permanecer nas trevas, ser do reino do demónio. Mas onde se encontram estas trevas? Precisamente no fechamento do homem em si mesmo, na não-aceitação de que Deus o procure para o sanar, na consequente inversão dos valores e adoção de ideologias que privilegiam o que se opõe ao desígnio divino, na adesão a um ateísmo prático ou expresso, enfim, na recusa ativa da salvação e da familiaridade com Deus.
O Jesus de Belém é Salvador precisamente enquanto retira a humanidade das trevas, reino obscuro do mal e da morte, para a elevar ao espaço da luz e da vida, da fé e do amor. Por isso, “a quantos O receberam, aos que n’Ele creem, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (v. 12). Na sua luz, não só vemos a luz (Sl 36, 9), mas tornamo-nos luz, como Ele nos garante: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5, 14). Com Jesus, de facto, o cristão é “coluna de nuvem e de fogo” (Ex 24, 16) que guia o mundo de dia e de noite a caminho da terra da promessa, da pátria da alegria e da fraternidade, ajudando os cansados e desanimados, os tristes e já sem forças com a iluminação da luz e a alegria da vida.
Nestes dias difíceis de pandemia, o mundo bem precisa deste contributo dos cristãos. Precisa que a nossa fé celebre o Natal como festa do amor, que exprima bem até que ponto chegou o amor de Deus por nós: porque a desobediência dos nossos primeiros pais nos privou dos dons prometidos ao início da história, Deus ultrapassou-os largamente ao tornar-nos filhos no Filho. E o mundo precisa também que o Natal seja mesmo a festa da esperança: porque somos amados por Deus, porque temos Jesus connosco, a angústia, o desespero, a tristeza e os medos não podem existir onde se encontra a salvação. O Senhor, que é luz e vida, dissipa as trevas das nossas angústias, sustem-nos e guia-nos no nosso caminho incerto.
Às crianças que não podem brincar livremente na rua, aos adolescentes a quem não tem sido possível ir para a casa dos amigos, aos jovens que não podem fazer festa em grupos ruidosos, aos casais que acrescentam às suas preocupações do dia-a-dia mais esta do bem-estar da sua casa, aos desempregados que só veem negrura à frente dos olhos, aos doentes que procuram vida e só ouvem falar de morte, aos velhinhos privados da grande razão do seu viver que são os afetos e a família, aos sacerdotes, diáconos e outros agentes de pastoral que não abandonam as suas ovelhas não obstante o lobo medonho do vírus, a certeza de que a festa do amor e da esperança é para nós: na privação deste Natal, tal como no de Jesus, está o início da transformação e o início da vida nova para o mundo.
Para todos, invoco a Salvação que é o Deus-Menino. Ele não é apenas distribuidor de graças, mas o autor de todas elas. Invoco-o por intermédio da sua e nossa Mãe: ela é a carícia de Deus que nos seca o suor, enxuga as lágrimas, anima os fracos e dá força aos caídos, como é típico das mães fortes. E também o invoco por intercessão de S. José, já que, desde o dia 8 de dezembro, estamos a viver um ano que é dedicado a este “pai da ternura”. Com ele, como escreve o Papa Francisco, “é como se Deus nos repetisse: «Não tenhais medo!», porque «a fé dá significado a todos os acontecimentos, sejam eles felizes ou tristes».
Boas festas! Santo Natal