
Por M. Correia Fernandes
Cubram de flores a única verdade /Que se eterniza!”.
Miguel Torga (1907-1995)
Escrevo estas reflexões em dia de S. João da Cruz. Veio à memória a palavra do seu hino “Embora seja noite”: “Aquela fonte que mana e corre… sua claridade não é nunca escurecida… e sei que sua luz toda já é vinda”. Sente-se aqui o odor perene do Natal: no meio das pandemias e dos dramas, dos confinamentos e das ausências, e dos rostos desconhecidos, a luz que já veio há-de continuar a vir sempre, embora pareça noite. Vivemos essa experiência da noite que envolve, especialmente nestes dias curtos, mas o envolver desta Noite será um anunciar de luz. E a luz deve estar no coração de todos, como o Reino de Deus: “não estará aqui nem ali, porque está no meio de vós” (Lucas 17, 20-21). Ou melhor, deve estar dentro de vós. Anunciam agora também uma “estrela de Natal”, a conjunção dos planetas Júpiter e Saturno. Oxalá se possa ver e seja bonito: a beleza transforma o mundo. Este Natal deve ser por isso de novo um sinal de esperança.
Leio também no diário “Público” de hoje o testemunho de um médico que viveu a enfermidade e que afirma: o próximo ano vai ser o ano zero”. Esperemos que seja o ano zero da superação do mal e da recuperação dos bens da convivência e da partilha social e cultural. E já agora também de partilha espiritual, que é a esquecida mãe de todas.
Estes tempos trouxeram-nos formas diferentes de partilhar a vida e a fé. Menos são as pessoas nas igrejas (como nos locais de espetáculos), mas mais visível é o uso das tecnologias para estabelecer a comunicação e mesmo a celebração. Acontecimentos, conferências, concertos, celebrações passaram também a usufruir de outros públicos. Não gosto do dito “Nada será como dantes”, porque está claro que o será, com novos modelos e novos parâmetros. Mas o encontro das pessoas e das comunidades voltará a perfilar-se com dinâmicas diferentes.
Muitas têm sido as mensagens deste tempo: desde as mensagens do Papa Francisco, dos Bispos, dos Presidentes, dos mentores culturais, dos encontros televisivos. Em plena pandemia, o Papa Francisco lançou uma encíclica fundamental, a “Fratelli Tutti”, com a proposta inovadora da “caridade social”. A esperança de futuro está sempre presente nas palavras do papa: “Não roubemos às novas gerações, a esperança de um futuro melhor”, o que é projeto tanto para o clima como para o relacionamento humano: transmita-se aos jovens o conceito e o exemplo da construção de um mundo melhor, baseado tanto no aperfeiçoamento da tecnologia como no aprofundamento dos valores humanos e espirituais, tão ausentes na propaganda mediática nas mensagens encobertas da superficialidade e do imediato. Temos agora que viver um tempo de Natal focado no essencial.
Mas tem sido sempre no essencial que o Papa Francisco tem situado a sua intervenção. No Natal de 2015, na mensagem para o Dia Mundial da Paz, eram propostos: a superação da indiferença, os valores da solidariedade, da misericórdia e da compaixão, do respeito pela Natureza e a busca do seu equilíbrio e a construção da casa comum. Vemos agora como retomou a mesma dinâmica nos escritos subsequentes: a encíclica “Laudato Sì” e a “Fratelli Tutti”. Afinal a grande novidade das mensagens está na sua fidelidade ao essencial. Como na nossa condição humana: o mal da nossa sociedade é centrar-se no superficial e no efémero.
Em 2016 escrevemos na primeira página deste semanário um texto de Miguel Torga que, na sua distância de composição em meados do século passado (1950), exprime bem e mensagem para estas dias curtos e densos de incertezas e de medos:
“Ponham pois rosmaninho/ Em da rua,/ Em cada porta,/ Em cada muro, /E tenham confiança nos milagres/Desse Messias que renova o tempo./ O passado passou,/O presente agoniza./Cubram de flores a única verdade /Que se eterniza!”.
Como procuraremos na sociedade “a única verdade que eterniza”? É esta a tarefa escondida ou clara destes dias, “embora seja noite”.