
Por Manuel António Ribeiro
Depois de quase um ano de confinamento, sobrecarregamos muitas incertezas e inquietações, grandes sofrimentos e numerosas mortes. Tudo o que parecia firmemente seguro ficou de repente perturbado pela incerteza e por debilidades que nos ultrapassam. Tornou-se absurdamente clara a fragilidade das certezas que o ser humano construíra. A eficácia mortífera de um vírus desconhecido constituiu um rude golpe no narcisismo do homem moderno, que acreditava ter roubado o fogo aos deuses para trazer à terra as certezas inabaláveis de uma prosperidade sem limites.
Esta tempestade inesperada faz avançar a urgência da construção de um mundo mais humanizado, apesar de os sinais da sua gestação serem lentos e ainda pouco percetíveis. Partindo do dado de que todos os seres humanos constituem uma só família e verificando os sinais de que a humanidade caminha em sentido contrário a esta sua vocação, a encíclica Fratelli Tutti, convoca o mundo para uma mudança radical desta atitude paralisante. O que Papa pede não é uma tentativa fraca de mudança mas um movimento de transformação que revolucione as várias dimensões da sociedade, desde os modos de produção e de trocas comerciais até aos hábitos de consumo e às formas de poder e de comunicação.
Podemos sair engrandecidos desta dura provação, se ela favorecer o renascimento de uma Esperança construída em bases bem mais sólidas do que a ilusória fruição do consumo e do bem-estar ou de performances bem-sucedidas. Talvez possamos vir a descobrir, por exemplo, que muitas das reuniões anuladas e dos planos pastorais cancelados não fazem verdadeiramente falta à vitalidade da fé. Talvez a experiência dos nossos encontros desencarnados e asséticos nas redes sociais nos levem a apreciar muito mais o calor dos contactos humanos corporalmente celebrados. Talvez o confinamento nos ajude a descobrir melhor que a aventura da fé implica um desconfinamento permanente: o confronto com realidades novas obrigam-nos a desofuscar tanto as dúvidas como as procuras.
Tal empreendimento pode sucumbir se não confiarmos que é a irrupção de Deus na nossa história humana que ilumina a nossa maneira de viver a Esperança no meio das preocupações de momento. Foi a este mundo que um amor eterno estendeu os braços e isto deve ajudar-nos a religar a nossa atualidade a um tal mistério. O nosso Papa, em mensagem enviada ao recente festival italiano da Doutrina Social, deixa esta certeira admoestação: «A esperança é a virtude de um coração que não se fecha na escuridão, não para no passado, não sobrevive no presente, mas sabe ver o amanhã. Neste sentido, ser Igreja significa ter o olhar e o coração criativos e orientados escatologicamente, sem ceder à tentação da nostalgia, que é, para todos os efeitos, uma verdadeira “patologia espiritual”.» A tradição cristã sempre sublinhou que o núcleo da fé não reside na adesão a um corpo de doutrinas, mas no acolhimento da presença real do Espírito de Deus no seio da história humana. Os gestos daqueles que nesta pandemia estão a abrir caminhos de Esperança com o cuidado prestado aos mais vulneráveis e com iniciativas de partilha e de misericórdia deixam perceber alguma coisa de Deus em ações humanas.
Ficamos estarrecidos com os milhões de pessoas a quem o Covid-19 já ceifou a vida, mas a nossa Esperança faz-nos confiar que o Espírito Criador continua a transformar o mundo e a recriar a vida do Homem. Um dos primeiros textos litúrgicos do Advento punha os cristãos a preparar-se para a celebração do Natal com este sonho de Isaías: «O Senhor fará desaparecer o véu de luto que envolve todos os povos… fará desaparecer a morte para sempre» (Is 25 6-10). Uma outra utopia mobilizadora constitui a mola impulsionadora deste convite ao sonho, presente na recente encíclica: «Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.” (F.T., nº 8)
Se este sonho for alma e sangue em nós, apesar da pandemia este Natal terá razões para uma festiva fonte de confiança, ao percebermos que o já e o ainda não constituem polos não necessariamente opostos.