O inquilino da Casa Branca num mundo que já mudou

Por Maria Isabel Tavares

Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

Joe Biden será o novo Presidente dos Estados Unidos, e nunca alguém teve tantos votos como ele. Porém, o seu adversário direto, também alcançou, agora, mais votos do que nas eleições de 2016 – aquelas que ganhou.

Foi uma celebração (tensa, agreste) da democracia, com travo amargo. A dúvida, tantas vezes glosada: quantos votos em Biden são, de facto, votos contra Trump? A pergunta, perplexa: o que levou ao reforço do número de votantes no atual Presidente? O receio, presente: como superará a América esta América de dois “povos” que se detestam?

Na Europa, têm soado vozes de esperança. Venha lá, outra vez, o reforço dos laços transatlânticos e da NATO; uma abordagem multilateralista, o compromisso com as NU; o retorno à OMS; a renovação do compromisso ambiental.

Haverá mudanças, sim (e não é de somenos), de estilo.

Mas as mudanças a que assistiremos não são “apenas” fruto de quem for inquilino da Casa Branca. É que o Mundo mudou, queiramos ou não.

Estados Unidos e (sobretudo) Europa têm perdido peso global. E por isso também, a política externa americana, e a sua relação com a Europa, estão a mudar.

O centro económico vai-se deslocando para Oriente; e, aí, a China reforça a sua influência. Confirma-o, por exemplo, o acordo assinado em meados de novembro com outros catorze Estados asiáticos, incluindo o Japão, a Nova Zelândia ou Myanmar. Abrange 2,2 mil milhões de pessoas é o maior acordo internacional de comércio livre regional e, mesmo se com um âmbito limitado, cimentará o poder e influência chineses na região.

Mas esta influência alarga-se a regiões mais distantes, e não exclusivamente no domínio económico, também no militar. No início de dezembro, à margem da reunião de MNE da NATO, o Secretário-Geral da Organização referiu-se (ainda timidamente) à China como adversário –  utilizando uma linguagem até agora quase reservada à Rússia. Vinho novo em odres velhos, ou o relançar “temático” de uma organização que tem dificuldade em definir-se e andou presa anos e anos a discutir quem gastava mais em defesa?

É natural que a Europa e Estados Unidos se encontrem como aliados naturais, na defesa de sociedades democráticas em que prevaleçam o Estado de Direito e a defesa dos direitos humanos. Sem dúvida: mil vezes mais Biden do que Trump. Mas a utopia liberal de que “o mercado”, como que por arrasto, iluminaria os Estados e os seus povos, e os abençoaria com a “nossa” democracia, tem sido dolorosamente posta em causa na prática.

De facto, a escolha é e continua a ser essa: o que vai ser das democracias, em que crescemos e acreditamos? Reconheça-se: já foi mais fácil defender aqueles valores fundamentais.

Não é verdade que, dentro da nossa Casa europeia, vamos sendo surpreendidos com a manipulação da democracia por populistas de cores várias, com os paradoxos da democracia intolerante, agudizados em situações de crise, económica ou pandémica? Trump foi-se, Biden aí está: muito bem. Mas, e nós? Ainda “damos” lições?