
Por Jorge Teixeira da Cunha
A medo teve e tem uma grande importância na vida das pessoas e dos países. Como demonstrou um historiador crente como Jean Delumeau, o medo condicionou a mentalidade da Europa de modo profundo, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna e continua a ser um factor importante nos nosso dias. Ontem, era o medo dos elementos da natureza, dos animais selvagens, o medo dos invasores estranhos, o medo dos feitiços e dos feiticeiros, da almas penadas, o medo das doenças e sobretudo o medo da peste. Foi o medo que deu origem a instituições cruéis e levou a formas doentias de imaginação. Foi o medo que levou a pensar os Novíssimos da maneira que os pensámos, como julgamento impiedoso, como inferno criado por Deus e assim por diante.
Com a evolução da ciência e da técnica, parecia que esse mundo do medo tinha ficado para trás, como recordação de um tempo de obscurantismo. Parecia que não haveria mais peste e que teríamos chegado a uma libertação do mal, da doença, da pobreza. A própria fé cristã começou, e bem, a apresentar Deus como bondade, a renovar os seus imperativos morais para lá das antigas sanções e a arrumar as antigas concepções do outro mundo no lugar das coisas menos úteis. Mas eis que, nos dias que correm, de pandemia e de incerteza, tudo isso parece posto em causa. E estão a acontecer coisas que dão que pensar.
Nestes meses de pandemia, eis que despertam e se desenvolvem rapidamente antigos fantasmas. Basta olhar à nossa volta para identificar alguns. As ideologias de direita dão em inventar novos inimigos, sejam os estrangeiros, sejam os ciganos, os imigrantes, que é necessário identificar e desmascarar, pois estão a pôr em causa o nosso modo de vida. As ideologias de esquerda, por sua vez, clamam contra os nossos hábitos de vida, pois são geradores de pobreza, de mudanças climáticas, de aquecimento global. Uns e outros propõem medidas drásticas, a modo de cruzada, que é uma forma de ignorar a racionalidade. A situação de doença generalizada e sem remédio que estamos a viver vem pôr os sentimentos à flor da pele e trazer ao de cima o fundo obscuro da alma. É num tal contexto que se torna necessário reforçar a fé como forma de viver sensatamente, mesmo no contexto de infortúnio que nos atinge.
A fé no verdadeiro Deus tem a virtualidade de nos guiar na vivência correcta das situações da vida. O que nos convém fazer diante do regresso do medo irracional? Convém-nos sempre voltar a escutar Jesus e a reviver a sua experiência insubstituível da paternidade divina. Antes de ser juiz, Deus é alguém mais importante. Vive connosco o sofrimento e a luta pelo triunfo da vida contra os seus agressores. A peste não é um castigo, mas uma provação. E Deus é o primeiro atingido por essa provação. Foi isso que experimentámos na páscoa de Jesus, que é um encontro doloroso com a força caótica que se opõe a Deus e quer aniquilar a criação divina. Segundo a Escritura, essa força estará sempre activa, de forma que nenhuma ciência e técnica a poderá anular e superar em definitivo. Por isso, é necessário viver continuamente com Jesus a luta contra o mal e a oposição a Deus criador e redentor. Será neste regresso continuo à fonte da fé que os cristãos encontrarão uma espiritualidade que lhe dê lucidez e consolação para enfrentar a dureza dos dias que correm. As propostas apocalípticas extremistas sempre devem fazer desconfiar os cristãos. Quem saber ter do seu lado Deus, não embarca em extremismos, políticos ou teológicos, que são sempre visões apressadas da realidade.