
Por M. Correia Fernandes
A poesia não pertence a quem a escreve mas àqueles que dela precisam.
No filme de Michael Redford “Il Postino” (que em português se chamou “O Carteiro de Pablo Neruda” e no Brasil “O Carteiro e o Poeta”), há uma passagem em que o carteiro (Mario Ruoppolo), após longos diálogos com o poeta exilado, afirma: “Consigo aprendi que a língua serve para muito mais que para lamber os selos do correio. A culpa por eu estar apaixonado é sua!”. Todos o sabíamos, mas ele descobriu o seu valor ao contacto dos ensinamentos do poeta sobre o valor da metáfora, o valor simbólico da linguagem, com que aprendeu a dirigir-se à sua amada e a compreender o universo social.
A “língua” é um dos exemplos em que a figuração metonímica atinge múltiplos valores: órgão físico, sensorial, metonimicamente transformado em processo comunicativo, valor alargado às conotações que lhe são associadas (verbal, escrita, tecnológica, matemática, computacional…) atinge pelas ligações simbólicas um alcance humano e cultural de que usamos sem o intuir.
É sabido como a linguagem publicitária constitui exemplo de originalidade e validação poética e utilitária das capacidades expressivas de cada língua, seja ela a língua natural criada pelo povo ou a que se encontra tecnologicamente em vias de transformação, como as linguagens atuais da investigação, das tecnologias e dos media.
Encontramos nos refrães publicitários (agora transformados nas formas de dizer comuns em slogans, vocábulo já admitido nos vocabulários do português moderno em ordem ao português futuro), exemplos significativos do uso simbólico da linguagem. Muitos são eles e omnipresentes. Um dos mais falados foi o “Há mar e mar, há ir e voltar”, atribuído à autoria de Alexandre O’Neill, o do “homem que pedala, que ped’alma /com o passado à tiracolo”, como celebrizou Sérgio Godinho.
É sabido que a publicidade é a arte de evidenciar como atraente o que o é, e de tornar atraente o que o não é. É a arte de criar necessidades para as coisas inúteis, que importa tornar aparentemente belas e atractivas. O tratamento pela imagem e o tratamento pela linguagem associada à imagem é o recurso mais utilizado e tido como mais eficaz. Por isso a publicidade é sempre enganosa. Sobretudo aquela que o não parece. A única publicidade menos enganosa é a que vem nas letras pequeninas que ninguém lê, e por isso é supinamente enganosa.
Mas há muitos outros ditos de boa imaginação e de expressividade e riqueza linguística, como o da Antena 2, que propõe “a arte que toca”, jogando com o duplo sentido de tocar (a música) e o tocar o coração ou a mente. Poderíamos lembrar também o refrão da Renascença que diz “a par da notícia, ímpar na música”, aproximando os conceitos de atualidade (a par) e de superioridade (ímpar).
Claro que a maior riqueza da linguagem deve ser buscada e usufruída nos poetas, ou nos melhores prosadores da língua, que conseguem dar uma força às palavras que no quotidiano deixamos fluir sem esforço nem jactância, mas que partilham da utilidade das tarefas da vida ou da inutilidade da sua dimensão folgazã.
Mas se percorrermos os ditos populares encontramos verdadeiras invenções poéticas de incrível alcance e bela expressão, sem que o povo tenha tido a pretensão de se exibir ou vangloriar, ou publicitar seja o que for. Tais invenções utilizam estratagemas e processos linguísticos diversos. O mais frequente e quase universal é a rima, a correspondência sonora dos fonemas, antologicamente ligada à poesia. Mas encontramos também a utilização da metáforas e metonímias simbólicas, a mudança de categoria gramatical e de sentido da mesma palavra, a observação de comportamentos sociais, a verificação de fenómenos meteorológicos ou de influência do tempo na natureza, a incompatibilidade dos ofícios…
Podem ser muitos os exemplos, mas registemos alguns:
Dar o seu a seu dono: o primeiro o seu tornou um possessivo em substantivo, criando uma rima interna.
Nem bom vento, nem bom casamento. Esta associação pela rima entre meteorologia (o vento leste é seco e seca) e um dado talvez histórico dos tempos dos casamentos nobiliárquicos e de conveniência.
Cria fama e deita-te na cama. Visão crítica e aguda do oportunismo dos beneficiários da fortuna.
Em abril águas mil. Em março tanto durmo como faço. Em outubro pega tudo: verificação de realidades da natureza, valorizados pela correspondência sonora das palavras.
Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades. Descontada a ginofobia, machista ou feminista, a rima insinua a realidade.
Quem casa quer casa. Mais um exemplo de como a mudança de categoria vocabular (casa, verbo e casa substantivo) exprime um dado sociológico, nem sempre fácil de alcançar, a habitação própria.
Quem não aparece esquece. Aqui é a rima que vai de encontro ao facto real: a ausência provoca o esquecimento.
De pequenino se torce o pepino. Um dado da observação da natureza transforma-se pela rima em preceito educativo.
Outros ditos há, como “Quem te manda a ti sapateiro tocar rabecão”, “Sol e chuva, casamento da viúva”, “Quem porfia mata caça” traduzem a sabedoria da prática corrente, através da utilização metafórica dos conceitos.
Uma modalidade nova de criatividade linguística encontra-se na linguagem com que se pretende realçar as supremas qualidades das bebidas e sobretudo dos vinhos.
Exemplos: “[Este vinho licoroso] ao olhar revela-se amarelo-palha e de lágrima abundante. O aroma é poderoso, com notas de fruta madura e mel que quase se bebem. Na boca o ataque é quente, evoluindo depois para sensações tácteis redondas, algo abaunilhadas” (Do rótulo de um vinho chamado Angélica). Ficam o conceito de lágrima abundante, a fruta que se bebe, o ataque quente e as sensações tácteis redondas.Com tratamento linguístico é coisa insuperável.
“Aroma rico e muito complexo”, “abundância de fruta vermelha madura”, “na boca forma um conjunto poderoso” (De uma marca de Douro).
Outros conceitos: “Notam-se ligeiras notas florais”, “tinto complexo”, final longo e envolvente. (Um vinho regional alentejano).
“No paladar é guloso”, “taninos redondos”, consistente dentro da sua gama” (Douro Doc).
Este exercício de ler o rótulo revela-se assim um prodígio de imaginação e criatividade, não apenas vocabular, mas sensorial e conceptual, exigindo do bebedor e do leitor ou esforço titânico para alcançar esteticamente o sentido de conjunto poderoso na boca, de final longo e envolvente e de paladar guloso – não o que bebe mas o vinho. Conceitos sinestésicos de rara complexidade.
Exercício que se propõe: transformar os bebedores em leitores do sentido metafórico imaginativo e poético da linguagem. Façamos todos este exercício, interpretando lexemas como “tinto complexo”, “final envolvente”, “tanino redondo”, e ficando, se não envolvidos no inebriamento, ao menos linguisticamente enriquecidos.