O melhor dos santos está dentro deles

O Venerável Padre Américo fez 133 anos no passado dia 23 de outubro. Foi uma figura maior da Igreja em Portugal. Um Padre e um verdadeiro Pai. Um místico que deixou obra para além da sua Obra da Rua. “Um gigante da caridade”. Publicamos aqui um texto de Luís Leal, investigador do Centro de Estudos de História Religiosa da UCP que se tem dedicado ao estudo em torno desta obra, figura e legado.

Por Luís Leal *

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«O melhor da vida do santo nunca aparece na vida que os autores escrevem. Não vem. O melhor fica dentro deles».

 [AGUIAR, Américo Monteiro de. «Palavras consoladoras». O Gaiato, 15 de Novembro de 1947, edição nº 97]

Completaram-se, por estes dias, 133 anos do nascimento de Padre Américo; e foi há já quase dois anos que muitos rejubilaram com a notícia do reconhecimento, pela Santa Sé, das suas “virtudes heroicas”. A convergência temporal destas efemérides deveria impor, a todos os que se (pre)ocupam com a “preservação actualizada” do seu “testamento” (social-caritativo, pedagógico, literário, teológico e espiritual) uma reflexão sobre o que se fez, faz e deve continuar a fazer em prol não só da preservação de uma tal “memória” mas sobretudo pela continuidade (da validade) do “projecto-desafio” que a sua vida enforma e inspira.

Padre Américo: do que dele se estuda ao que dele se (não) sabe…

Há já várias décadas, embora de forma algo “intermitente”, que o pensamento, obra e figura de Padre Américo tem suscitado interesse ao nível da investigação académica. No rol dos estudos que até hoje lhe foram dedicados, e em virtude de essa ter sido, porventura, a vertente mais “visível” do seu legado, prevalece uma abordagem em perspetiva pedagógica-social que coloca o nome de Padre Américo na lista dos incontornáveis da História da Pedagogia e da Acção Social em Portugal.

Sem de modo nenhum querer ser exaustivo neste elenco (já sintetizado por Henrique Manuel Pereira e Carlos A. Moreira Azevedo, em sucessivos artigos nas revistas Atrium, Humanística e Teologia, e Lusitânia Sacra), julgo merecerem destaque, pelo particular contributo para o que aqui se afirma, os estudos pioneiros de João Evangelista Loureiro, que reconhece em Padre Américo um «gigante da caridade» e sistematiza, pela primeira vez, o «Programa» e os «Princípios Educativos da Obra da Rua», inclusive no «Aspecto sobrenatural» no seu estudo Subsídios para o estudo do pensamento pedagógico do Padre Américo (Paço de Sousa: Editorial Casa do Gaiato, 1963). Mais tarde (1972), este investigador retoma e aprofunda a sua reflexão, dedicando à obra pedagógica de Padre Américo a sua Tese de Doutoramento na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Lovaina (Bélgica) intitulada L`Obra da Rua et l`éducation des enfants privés de milieu éducatif (publicada em 1978 pelo Instituto Nacional de Investigação Científica). Toda essa reflexão leva-o a considerar Padre Américo como Um grande educador português do século XX (Paço de Sousa: Editorial Casa do Gaiato, 1996), sobretudo enquanto «educador da [e na] liberdade».

Por sua vez, Ernesto Candeias Martins, afinando pelo mesmo diapasão de análise, dedicou ao tema vários estudos, num permanente crescendo de profundidade e amplitude na compreensão de tal contributo para a História da Pedagogia em Portugal: O Projecto Educativo do Padre Américo – O Ambiente na Educação do Rapaz (Lisboa: Temas e Debates, 2004) e Amor, Meditação e Acção. Pedagogia Social do Padre Américo Monteiro de Aguiar (Coimbra: Palimage, 2009) são títulos fundamentais a este respeito. Simultaneamente, este autor advoga uma outra correlação essencial para a compreensão da obra e figura de Padre Américo: a ligação existente entre evolução da sua obra social e as circunstâncias biográficas do protagonista (ver Padre Américo. O destino de uma vida. 2ª ed., Coimbra: Alma Azul, 2012). Embora muitos outros estudos se poderiam aqui referir, registem-se estes como modelares dentro desta perspectiva.

Mas, como sabemos, a obra de Padre Américo não se esgota na Pedagogia/Acção Social; ela é também (e intrinsecamente) uma obra “teo-lógica”, no sentido em que resulta de um permanente diálogo-confronto entre a História (e os seus múltiplos desafios) e o Evangelho (enquanto “fonte” de vida – aquela “vida em plenitude” – cfr. Jo 10, 10 – de que Jesus Cristo foi anunciador e promotor), a sua verdadeira e única “inspiração”. Por isso, outros houve (e continua a haver) que olham para tal obra/legado sob este prisma. Contam-se entre eles os padres José da Rocha Ramos e Luís de Jesus Ventura de Pinho (da nossa diocese), que lhe dedicaram as suas Teses (de Licenciatura, em 1997, e de Doutoramento em Teologia em 2014, respectivamente) ou D. António Marcelino, Bispo Emérito de Aveiro, que viu em Padre Américo um Precursor do II Concílio do Vaticano (Coimbra: Alforria-Tenacitas, 2016). Também nesse mesmo ano se publicou um estudo que visava, precisamente, perceber a influência de Padre Américo no clero seu contemporâneo (Luís Leal – Padre Américo Monteiro de Aguiar e a renovação do Clero português na primeira metade do séc. XX. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa – UCP, 2016), uma investigação que haveria de ser complementada pela Tese de Doutoramento, defendida em 2017 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e publicada em 2019 sob o título Padre Américo Monteiro de Aguiar: um “teólogo da ação” no Portugal contemporâneo (Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa – UCP).

De facto, esta é uma vertente tão decisiva à compreensão do que foi, disse e fez esta figura central do século XX português que urge alargar e aprofundar o debate em torno das suas ideias e propostas se queremos, efectivamente, ser fiéis ao seu legado. Isto mesmo defendia D. Januário Torgal Ferreira, na sessão evocativa dos 130 anos do seu nascimento (Colóquio “Padre Américo – 130 Anos (1887-2017)” – 21 de Outubro, UCP Porto), quando fazia notar a sua tristeza por «nesta casa ainda não haver um espaço/tempo de reflexão sistemática sobre o pensamento deste homem». Citando de cor as suas palavras, o prelado frisou que «conhecemos-lhe as “facetas”, temos dele as melhores e mais sentidas memórias, tentamos ser imitadores do seu ser e fazer… mas não nos dedicamos a “pensá-lo” com a profundidade e rigor que o seu denso pensamento nos exige».

Volvidos três anos, é esperançoso registar o que, entretanto, naquela mesma “casa” se foi fazendo para eliminar tal “vazio”. Logo no ano lectivo de 2018-2019, o Curso de Licenciatura em Ciências Religiosas propunha uma Unidade Curricular intitulada «Pe. Américo Monteiro de Aguiar: Uma “teo-práxis” em diálogo com o(s) tempo(s)», como que “entreabrindo a porta” para a referida e tão desejada reflexão; e aos alunos do Mestrado Integrado em Teologia era sugerida uma análise em torno dos “Rostos do Presbiterado no séc. XX”, entre os quais figurava Padre Américo e a quem se deu o justo destaque. No ano lectivo seguinte, e novamente no Curso de Licenciatura em Ciências Religiosas, «A proposta pedagógica para a transcendência nos escritos do Pe. Américo» era a nova perspectiva de estudo desta obra-pensamento. Enfim, sementes que se lançam ao vento e que, lentamente, começam a germinar.

O (quase total e desconcertante) desconhecimento inicial manifesto por grande parte dos alunos diante do autor e do seu pensamento-obra foi dando lugar à surpresa, e mesmo ao “espanto” diante da profundidade, originalidade e abrangência das suas ideias e arrojo das suas iniciativas. Esta será, porventura, a “grande ponte” que esta e as gerações vindouras merecem poder atravessar. A todos nos cabe tornar possível a travessia.

 

* Luís Manuel da Cruz Leal nasceu em Vilela, Paredes, em 1982. É Licenciado em Teologia (2008) pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa – Porto, com a tese Com(o) ‘Um deus passeando pela brisa da tarde…’: leitura teológico-narrativa de um romance português contemporâneo. Em 2010, concluiu o Mestrado (“Biénio”) em Teologia Fundamental no Instituto Teológico Compostelano – Universidade Pontifícia de Salamanca, apresentando a tese A Teologia como ‘memória (anamnesis) narrativa’: a proposta (teológico-fundamental) de J.B. Metz (Madrid: Editorial Sindéresis, 2017) e em 2017 concluiu o Doutoramento em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com a dissertação intitulada Padre Américo Monteiro de Aguiar: Um ‘teólogo da ação’ no Portugal contemporâneo (Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa – UCP, 2019). É Vogal da Direcção e Assistente de Investigação no Centro de Estudos de História Religiosa, onde colabora na dinamização das suas actividades na região Porto e Norte.