
Por M. Correia Fernandes
Foi no ano de 1920 que foi publicada em Lisboa, promovida por Ana e João de Castro Osório, a primeira edição, com o título de Clepsidra, do conjunto de poemas de Camilo Pessanha (1867-1926). A primeira edição (e outras que se lhe seguiram) utilizava a grafia Clepsydra. Uma edição da Ática escrevia Clépsidra, provavelmente para salientar a abertura da vogal é. Porém, o primeiro conjunto de poemas de Camilo Pessanha surgiu no único número da revista Centauro, publicada em 1916 e na qual colaboravam também Fernando Pessoa e Luis de Montalvor, tentando continuar a intervenção literária na sequência do encerramento da revista Orpheu (1915).
A “Centauro, Revista Trimestral de Literatura”, volume I – 1916, que acabou por ser número único, publicado nesse ano, apontava como intencional esse 1.º número para os meses de “Outubro-Novembro-Dezembro”. Este número iniciava-se com uma simbólica “Tentativa de um ensaio sobre a Decadência”, de Luis de Montalvor, que figurava como Director da revista. Vinham depois os quinze “Poemas Ineditos” de Camillo Pessanha; em seguida, após “Quatro Sonetos” de Alberto Osorio de Castro, apresenta-se o conto “A aventura de um Satyro ou a Morte de Adonis” de Raul Leal; perfila-se depois o notabilíssimo conjunto “Passos da Cruz (quatorze sonetos)”, de Fernando Pessoa – sobre cujo sentido e alcance ainda falta um estudo de fundo. Trata-se de sonetos sobre o grande drama da existência humana associado à criação poética, à semelhança dos devocionais Passos da Cruz (o que demonstra o conhecimento que o poeta não cristão possuía sobre os Evangelhos e a tradição e as devoções cristãs). Encontramos ainda “A Ultima Nau (poema em prosa)” de Julio de Vilhena e “Poemas da Alma Doente”, de Silva Tavares. O exemplar trazia um “Hors-texte especial de Christiano da Cruz”, 1916, uma imagem interpretativa do centauro, metade cavalo e metade homem. Uma introdução esclarece: “Os poemas que publicamos do extrordinario poeta que é Camillo Pessanha foram amavelmente cedidos pela distincta escriptora, Ex.ma Sr.ª D. Ana de Castro Osorio, e fazem parte do livro inédito que o Poeta confiou à guarda carinhosa dessa illustre senhora, que em breve o editará, bem como, a traduções para portuguez, da Elegias Chinesas, que constituem um livro em prosa, a publicar. É por tanto esta a unica e fiel origem dos ineditos do Poeta”. [Esta citação pode ser tema para uma reflexão sobre a ortografia portuguesa, a duplicação e a escrita das consoantes não pronunciadas, bem como a ausência de acento nas palavras exdrúxulas].
Entre os poemas publicados neste número figuram alguns dos que ficaram mais conhecidos e citados, como “Chorai, arcadas, do violoncelo”, “Imagens que passaes pela retina/ dos meus olhos”, “Foi um dia de inuteis agonias”, “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençoes de linho” e o belíssimo “Só, incessante, um som de flauta chora”.
Este número de Centauro foi editado, em edição fac-simil, por Contexto, editora, em 1982, incluindo na capa o desenho de Christiano da Cruz.
Nesses anos e até à sua morte, ocorrida em 1926, aos 58 anos de idade, Camilo Pessanha encontrava-se e Macau, onde se instalara desde 1894 como docente de Filosofia e onde se familiarizara com o ópio, conviveu com Wenceslau de Moraes, que depois se deslocou para o Japão. No dizer de Ester de Lemos, Pessanha “ foi uma personalidade singular de homem e de poeta: agnóstico e materialista mas trabalhando por uma ânsia quase mística de participação… atormentado de nostalgias, frustrações e inibições, mas atento e vibrátil a todas as sugestões de beleza”. Sublinha o seu “poder encantatório das palavras”, que está bem visível no conjunto dos seus poemas. (Enc. Verbo Séc. XXI)
A força significante de Clepsidra, nome do relógio de água que registava o devir do tempo, objeto marcado pela história (vem do tempo dos egípcios, mas tornou-se funcional com sucessivos aperfeiçoamentos que lhe davam maior rigor de medição, por exemplo no controle de tempos de intervenção em discursos ou julgamentos, homólogo do relógio de areia, a ampulheta), é o seu forte sentido simbólico para traduzir o fluir dos dias, o caráter limitado e passageiro e a caducidade da vida.
De facto é a corrente literária do Simbolismo, que, na inspiração de Wal Whitman(1819-1892) tivera origem em poetas franceses como Paul Verlaine (1944-1896) e Charles Baudelaire (1821-1867), cujas obras Fleurs du mal e Correspondances inspiraram esse gosto pelas busca das realidades simbólicas para além do simples real. O simbolismo, desenvolvido no final do séc. XIX, constituiu uma reação contra o positivismo e o realismo que tendências literárias do séc. XIX tinham afirmado como missão da literatura, uma espécie de reação do sentido estético e espiritual contra o mecânico e concretista da técnica. Camilo Pessanha é certamente o maior, e segundo alguns o único pleno representante em Portugal dessa tendência. Ao simbolismo se associa também o conceito de “Decadentismo”, que figura no referido ensaio de L. de Montalvor. A este tema dedicou José Carlos Seabra Pereira o completo estudo Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, 1975.
Dos poemas de Pessanha, que busca sentidos simbólicos nas próprias palavras, podemos discernir conceitos e vocábulos de forte carga sugestiva, de baudelerianas “correspondências”, como os nomes melancolia, grinaldas, aljôfar, girassóis, carne de camélia, sorvedouro, tatuagens, “e os alabastros dos balaústres”; e adjetivos como esquivas, convulsionadas, translúcidas, cristalinas; e os verbos vagabundar, desfraldar, desmaiar, extinguir, exilar, doidejar… Envolvem realidades, sugestões, expectativas e vivências
Deixem-me terminar esta crónica com a presença de um verso do qual ouvi uma vez uma citação de memória quase encantatória a Eugénio de Andrade, que se deliciava com a simbologia oculta ou visível destes versos do poema “Naufragio”:
Roseas unhinhs a que a maré partira…
Dentinhos que o vae-vem desengastara…
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…