Por Jorge Teixeira da Cunha
Não posso começar esta crónica sobre as palavras do Papa Francisco no documentário recente, sem dizer aludir às palavras que ele disse ao Primeiro Ministro de Espanha na semana que passou. É uma brevíssima alocução, de uma comovente sabedoria sobre a arte de dirigir um país. Cita, de memória, dois poetas argentinos e aconselha a leitura de um livro recente sobre a ascensão do nacional socialismo na Alemanha de 1933. Lembrei-me como é consolador para a Igreja ter Francisco na condução dos seus destinos neste tempo atribulado para a humanidade a sofrer a doença pandémica, e a fé em Deus a ser posta em causa pela barbárie que campeia em tantos ambientes, incluindo os ambientes eclesiais. A providência divina escreve direito por linhas tortas.
De grande sensatez e sabedoria moral me pareceram as palavras que disse o Papa sobre a possibilidade das uniões civis homossexuais serem protegidas pela lei. Ao contrário de tantas palavras que foram ditas para explicar e mesmo para corrigir o que foi dito por Francisco, o seu ponto de vista é muito feliz e muito oportuno. Vou tentar explicar porquê.
Vivemos numa sociedade pluralista em que não é possível haver uma total coincidência entre moral cristã e lei civil. Essa é uma consequência do princípio da laicidade. Nenhuma corrente espiritual pode impor o seu ponto de vista moral a toda a sociedade e não deve pedir ao Estado que o faça. O ordenamento jurídico tem de encontrar um ponto de equilíbrio entre aquilo que protege e aquilo que proíbe, na base da racionalidade, e não na base de qualquer alinhamento racional ou confessional parcelar. Por isso, os católicos não podem esperar que a lei civil siga a sua moral; devem mesmo abster-se disso. Devem, porém, exigir do Estado a devida imparcialidade para não serem também obrigados a seguir a moral sectária de outros. A liberdade de todos é possível dentro deste equilíbrio sempre cheio de tensões, não raro, dolorosas.
Por isso, se existem pessoas homossexuais que convivem pacificamente, na base de uma condição humana que lhes coube em sorte, é natural que o Estado reconheça essas formas de vida e lhes conceda uma devida e justa protecção jurídica. Foi a justiça desta opção que o Papa reconheceu nas afirmações feitas no documentário. Essas palavras foram recebidas em muitos meios como um bálsamo de consolação e devem ter levado muita gente a reconciliar-se com a fé em Deus e a olhar com benevolência a Igreja.
Muitos se apressaram a vir dizer que o Papa não tinha mexido na doutrina moral da Igreja e que a homossexualidade continua a ser uma prática imoral. A maioria da gente perita na moral da Igreja que aparece nestas ocasiões apenas conhece de vista o Catecismo mas ignora um grande número de outros elementos de que é feita a teologia moral. Entre estes elementos ignorados encontra-se a necessidade de uma contínua interpretação da revelação divina e a escuta da experiência humana de que fala o Concílio Vaticano II. E ignora também a diferença entre a universalidade da lei e o valor da vivência concreta das pessoas. Por isso, da nossa parte, antes queremos errar na companhia do Papa a ter razão na companhia dos e das moralistas de ocasião.
Claro que Francisco, no mesmo documentário, fala de muitos outros aspectos da vida do nosso mundo e da nossa Igreja de hoje que bradam ao Céu de maneira talvez mais gritante que a homossexualidade. Entre esses, podemos citar a permanência da pobreza, do desemprego, da habitação irresponsável do planeta, da guerra, da migração descontrolada. Mas estes temas não provocam quase nenhuma mobilização, nem no mundo político, nem no mundo crente. Por isso, da nossa parte, há motivo para agradecer à Providência que nos tenha dado um Pastor que vive com os pés na terra e que nos confirma na fé de Jesus e no apelo contínuo ao reconhecimento do seu Reino.