Da linguagem das palavras à linguagem dos gestos

Por M. Correia Fernandes

Na crónica anterior (do dia 7 de outubro) procuramos evidenciar os conceitos escondidos ou mascarados em palavras em que abunda a comunicação social, buscando originalidade em sintagmas pretensamente avançados ou eivados de um modernismo vocabular exibicionista, como a estranha frase “O desemprego dos jovens dispara”, mas que no fundo encerram conceitos de violência sub-reptícia: não se dá por ela, mas está lá.

Encontrei depois na encíclica “Fratelli Tutti” do papa Francisco estas palavras: “O próprio isolamento consumista e acomodado… favorece o pululamento de formas insólitas de agressividade, de insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro…  A agressividade social encontra um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis e nos computadores. Isto permitiu que as ideologias perdessem todo o respeito” (n. 44). E lá mais adiante lê-se: “O pior é que esta linguagem, habitual, no contexto mediático de uma campanha política, generalizou-se de tal maneira, que todos a usam diariamente” (n 201).

Hoje proponho uma reflexão sobre os gestos e atitudes que nos trouxe a influência da pandemia. Não terão a mesma agressividades das palavras, censurada por Francisco, mas encerram sentidos em que importa refletir.

 

1.A cotovelada. Não sei por ordem ou influência de quem – nunca foi referido como lei ínsita na natureza nem no Diário da República – que se tornou usual as pessoas não se cumprimentarem pela forma tradicional, mas por uma cotovelada. Será para evitar distanciamento ou contacto? Mas a proximidade e o contacto existem. Será porque as mãos são mais transmissoras de vírus que os cotovelos? Facto não demonstrado.  Se é para evitar contactos, como dizem, o contacto lá está, com roupa ou sem roupa, com sorriso ou sem sorriso. Alguns suplantam o disparte com o toque através de uma patada, certamente porque o vírus terá mais dificuldade em subir pelas pernas até aos pulmões.

Não teria sido mais sensato, como muitos sugerem e poucos praticam, que se recorra à saudação à maneira indiana, ou japonesa, por uma leve inclinação distanciada da cabeça em direção à pessoa saudada e para ela, ou elas, orientada. O colocar as mãos juntas é igualmente sinal de consideração e de deferência.  É um gesto muito mais rico de sentido, até por ser tradicional noutras formas de civilização, como são as orientais.

 

  1. A cotovelada vem acompanhada pela máscara. Uma das maiores inconveniências do seu uso, suposto virtuoso, é o atentado ao reconhecimento, à saudação e ao sorriso das pessoas. Será que as máscaras justificam este absurdo de nos tornarmos uns para os outros irreconhecíveis e distantes, mesmo que a vantagem de lermos os olhos possa minorar esse desconhecimento e distanciamento? Quantas vezes alguém que nos vem saudar, ou solicitar um auxílio, ou sugerir uma atividade, para sabermos quem é, temos de solicitar: “não se importa de baixar a máscara, para que o(a) possa reconhecer?” Ou, como me aconteceu neste dia, ter prestado um serviço jornalístico a alguém que me indicou o seu nome mas de quem não pude, por cortesia, ver o rosto.

Por outro lado, o uso da máscara exalta o medo uns dos outros, exibe a desconfiança, este olharmo-nos como se fôssemos veículo de um perigo público. Há menos complacência das autoridades para as ameaças de violência física do que para esse gesto tão destrutivo da nossa identidade.

Também aqui cabe uma citação do texto “franciscano”: “Sentar-se e escutar o outro, característico de um encontro humano, é um paradigma de atitude recetiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro, dá-lhe lugar no próprio círculo. Mas o mundo de hoje, na sua maioria, é um mundo surdo” (n48).

 

  1. Suposta a utilidade da máscara (onde está a defesa dos olhos, que também são tidos como veículo de infeção?), nunca se consegue entender a razão da sua obrigatoriedade, propalada em editais incriminatórios à entrada dos estabelecimentos hoteleiros, quando um cristão (ou muçulmano) vai tomar um café ou tomar a sua refeição ou bebida? Qual é a utilidade de um objeto “obrigatório” que depois se tem, obrigatória e razoavelmente, de tirar?

Esta imposição é um perfeito absurdo, e mais absurdas são as pretensas justificações para semelhante norma. Ainda não ouvi uma em que se possa reconhecer suficiente fundamento. Ainda bem que a generalidade dos responsáveis da generalidade dos estabelecimentos hoteleiros  fazem natural  e virtuosa vista grossa sobre tal norma.

 

4.Os letreiros “sente-se aqui”. Proliferam em igrejas e noutros espaços de acesso público, geralmente em inglês, acompanhado da tradução em português, como é natural mas nem sempre acontece. Sabemos como esses materiais são inutilidades excelentes para originar o recurso rápido a atividades industriais até aqui inexistentes ou inúteis. Mais me surpreende o abuso de placas acrílicas que, como em geração espontânea, apareceram em tudo quando é espaço de acesso público. Como é que os construtores adivinharam a sua obrigatoriedade? Ou como é que a obrigatoriedade originou a proliferação meteórica de construtores? O engenho  industrial é coisa que nos fascina.

O mesmo se diga dos dispositivos, até aqui inexistentes, e que logo proliferaram em todo o lado, para disponibilizar o produto que dizem “higienizar” as mãos.

Neste campo, apenas uma coisa os torna “higienizantes”, que é o álcool. O qual, por acaso, começou a rarear e deixou de se encontrar nos locais próprios, como em farmácias e supermercados, onde frequentemente não existe, mas onde sempre existem  frascos de gel, vendidos ao triplo ou mais do preço.

Engendrou-se assim uma espécie de economia paralela, que importa justificar em nome da saúde pública. Mas será que estes são processos de promoção de saúde pública?

O meu entendimento do fenómeno é a expressão brasileira e bem portuguesa: “Tomara que fossem”.