Por Ernesto Campos
“Uma civilização baseada apenas
no homem não resiste muito tempo”
André Malraux, filósofo séc. XX
Humanismos há muitos. Desde o humanismo ateu que confia ao homem a sua própria salvação, ao agnóstico que dá ao homem a honra de ser homem, mas, ignorando o Absoluto, se resigna à frustração e ao fado de ser homem; ao humanismo que para ser autêntico só pode estar além da finitude humana. É o que Malraux diz com a palavra-chave apenas na citação referida, supondo um humanismo outro, um humanismo total; entenda-se o que “abraça o homem na plena verdade da sua existência de ser pessoal, ser comunitário e ser social (João Paulo II), humanismo integral e solidário, isto é, do homem todo e de todos os homens, na sua dimensão biopsicossocial e espiritual, que nos salva de ser apenas homem.
É deste humanismo que fala a encíclica Todos Irmãos. As soluções políticas de populismos fechados e liberalismos individualistas o que propõem não são valores cristãos porque ferem a dignidade da pessoa e defendem uma sociedade que ignora a amizade social.
Mais do que direitos e deveres é na amizade que somos todos irmãos. Esta ideia de amizade traz o perfume dos séculos: S. Tomás de Aquino diz que ela é o campo do desprendimento e da disponibilidade interior para as exigências do outro; ela enobrece o princípio da fraternidade, inseparável, aliás, da liberdade e da igualdade. A modernidade política não realizou este ideal, perdeu-se em ideologias individualistas e coletivistas.
Falamos de direitos do homem e de globalização como passos em frente, mas ainda aí conta-se, apenas, com o homem que o humanismo míope reconhece como limitado. O que a encíclica Todos Irmãos propõe é uma (re)nova(da) cultura, uma revolução baseada em ideias que amadureceram ao longo do tempo e podem ser hoje mobilizadoras: amizade social, disponível para o diálogo sem preconceitos nem desconfianças, humanismo total que projeta o homem para o Absoluto como referência para superar a alienações e inseguranças do relativismo dos tempos agitados e das modas políticas.
Onde podemos hoje procurar a fonte da necessária energia mobilizadora? A resposta do Papa Francisco vem citada na encíclica “Os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora”. Com efeito, o racionalismo autossuficiente permite-nos concluir que a liberdade e igualdade são critérios básicos da convivência cívica, mas não bastam para construir a fraternidade; esta exige um mais além, um suplemento de alma. A sabedoria das religiões é expressão narrativa e vivida dos valores e dos princípios supremos e transcendentes. A fé dos homens encontra aí a sua verdadeira dimensão. É por isso que, diz o Papa “Não se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os poderosos e os cientistas. Deve haver um lugar para reflexão que provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria.”.
Verdade seja que só 6% dos europeus se declaram ateus confessos. Bem pode o século XXI ser o retorno do religioso como resposta ao desencanto do homem comum e às suas inquietações: a inquietação da insegurança em face do relativismo sem valores; a inquietação da solidão que se anula na solidariedade e no sentido de pertença à mesma crença religiosa; e da inquietação da nostalgia do transcendente que se procura nas narrativas religiosas e, para além delas, na vivência da fé, que dá sentido à vida. O que a encíclica Todos Irmãos nos propõe é uma verdadeira revolução cultural.