
Por M. Correia Fernandes
O Ex.mo Cabido Portucalense preparou cuidadosamente uma celebração musical (para além ou em complemento da celebração litúrgica de 11 de outubro de 2020), que teve lugar no anterior dia 9, na catedral do Porto. Foi apresentada a Missa Pro Defunctis (Missa pelos Defuntos), partitura de um autor português, Pedro do Porto, que terá vivido entre 1465 e 1535. O concerto foi apresentado pelo agrupamento “A Música e o Espiritual” dirigido por Pedro Monteiro, que dirige também na Universidade Católica (Porto) a pós-graduação em Música Sacra.
Esta Missa Pro Defunctis constitui um belo exemplo da passagem do canto gregoriano para as composições em polifonia, que partem das belas e inspiradas melodias do canto gregoriano para a nova forma de expressão na junção de vozes que procuram enriquecer pela harmonia a melodia monódica do gregoriano. Por isso, todas as partes componentes da nova composição desta missa se iniciam pela exposição da melodia original em gregoriano, depois reconvertida através dos desenvolvimentos harmónicos.
A obra apresentada integrava o texto oficial da Missa dos Defuntos do Missal romano, com o Requiem (introito, por isso se chama “Missa de Requiem”), o Kyrie, a sequência “Dies Irae”, o Ofertório “Domine Jesu Christe”, o Sanctus, Benedictus e Agnus Dei (este com a conclusão “donna eis requiem” e o “Lux aeterna”. A este conjunto se associaram mais duas composições sobre o mesmo tema. O concerto concluiu com um “Regina Coeli, laetare” e com o canto da “Salve Regina”. O coro brindou em extra o “Salve Regina” em canto gregoriano, sugestivamente apresentado pelo conjunto das vozes femininas do grupo.
Importa salientar o extremo cuidado dos componentes do conjunto coral “a capella” (sopranos, contraltos, tenores e baixos) no rigor e equilíbrio vocal, na afinação das vozes, e na elaboração expressiva do conjunto. Não houve muita gente a ouvir, mas vale a pena aceder ao “site” do Cabido Portucalense e ouvir no remanso do lar a riqueza expressiva e espiritual desta obra.
Pedro do Porto (c.1465-1535) está identificado com Pedro Escobar, que foi mestre capela na catedral de Sevilha, mas que estudos atuais certificam como natural do Porto, formado na corte de Afonso V (1432-1481), tendo-se deslocado depois para o serviço da Isabel a Católica e desempenhado a missão de mestre capela na catedral de Sevilha. José Augusto Alegria, em artigo na Enciclopédia Verbo, reconhece Pedro do Porto como o “autor da mais antiga composição escrita por um português”, propondo que a ele se referem duas obras de Gil Vicente, as “Cortes de Júpiter” e o “Auto da Cananeia”. Este terminava com um motete a 4 vozes, que teria sido escrito propositadamente para a apresentação desse auto. O texto de Gil Vicente diz: “E cantando Clamabat autem se termina o dito auto.
Esta obra, a Missa pro Defunctis agora apresentada integra já uma proficiente e equilibrada elaboração hormónica, interiorizadora do sentido espiritual e denso dos textos da missa de defuntos.
Música Sacra do século XXI
Nesta ocasião, o Presidente do Cabido Portucalense, Jorge Teixeira da Cunha, deu a conhecer a publicação do primeiro volume de um projeto que engloba várias composições de autores portugueses e portuenses: a apresentação de textos litúrgicos para celebrações eucarísticas dos vários tempos e mistérios do ano litúrgico, começando esta primeira edição, com a “Missa de Natal”, da autoria de Paulo Ferreira-Lopes, sob encomenda do Cabido Portucalense, no intuito de promover a criação de obras contemporâneas de Música Sacra, com aprofundamento musical, pela “encomenda de trabalhos de qualidade a compositores da atual geração”. Reconhecendo que “a música é parte integrante da celebração da fé cristã”, o Cabido quer “prestar serviço à vivência litúrgica e à arte musical” com este iniciativa.
Do autor desta primeira obra, Paulo Ferreira-Lopes (n. 1964) referimos os dados profissionais mais relevantes da sua criação musical: “Estudou composição em Lisboa com Constança Capdeville entre 1988 e 1991. Em 1994 fixou-se em Paris, onde estudou composição com Emmanuel Nunes, Antoine Bonnet e música electroacústica com Curtis Roads. Em 1996 terminou o mestrado em Composição na Universidade de Paris 8, tendo estudado com Horacio Vaggione. No mesmo ano fez o “Internationale Ferienkurse für Neue Musik” em Darmstadt, onde estudou com Karlheinz Stockhausen. Fez investigação no “Département d’Esthétique et Technologies des Arts” na Universidade de Paris 8 como bolseiro do “Ministère de la Recherche”. Em 1997 foi premiado na exposição “Documenta X” em Kassel. Fundou o Estúdio de Música Electrónica C.C.I.M., que dirigiu entre 1992 e 1995. Fundou e dirigiu (2000) os cursos de verão – olhares de Outono na Universidade Católica do Porto. Desde 1998 é artista residente e investigador no ZKM – Zentrum für Kunst und Medientechnologie em Karlsruhe na Alemanha. É desde 2002 membro do Parlamento Europeu da Cultura. Em 2004 concluiu o Doutoramento na Universidade de Paris 8. Dirige desde 2004 o Centro de Investigação em Ciências e Tecnologias da Arte – CITAR na Universidade Católica do Porto. O seu trabalho foi seleccionado pelo ISCM para representar Portugal no World Music Days 2004. Os seus trabalhos têm sido apresentados em diversos festivais internacionais – “Musica” em Estrasburgo, Festival de Música do Estoril, Documenta X em Essen, Bienal de São Paulo, ZKM-Karlsruhe, World Music Days, Stiftung Gulbenkian, Expo 98, e por vários ensembles de renome internacional: AccrocheNote, OrchestrUtopica, Ensemble Modern Frankfurt, entre outros”. (Currículo na internet).
Esta obra segue os textos litúrgicos da celebração do Natal, com o “cântico de Entrada” (“Um Menino nasceu para nós”), o Kyrie, o Glória, o salmo responsorial (“Cantai ao Senhor um cântico novo”), aclamação ao evangelho (Alleluia, Santo é o dia que nos trouxe a luz”), o Credo, o Sanctus/Benedictus, o Cordeiro de Deus, e Cântico da Comunhão (“No princípio era o Verbo”).
A obra está composta para um solista (Soprano/mezzosoprano), um coro do conjunto Soprano, Contralto, Tenor, Baixo, um conjunto orquestral com trompetes, cordas (violino I e II, viola, violoncelo e contrabaixo), órgão, e percussão (tímpanos e sinos tubulares).
Uma leitura rápida deste conjunto revela uma composição de grande exigência quer orquestral, quer coral; exige solista com grande amplitude vocal; revela um estilo muito moderno (multiplicidade sonora, dissonâncias expressivas, escrita cromática, multiplicidade dos instrumentos). O salmo responsorial está escrito em diálogo entre o solista e o coro; o Credo apresenta uma curiosa e original ligação entre o “foi sepultado” e “Ressuscitou”, sem qualquer interrupção. O Coro final é especialmente solene. O tempo do Ofertório é apenas orquestral. O Sanctus evidencia o diálogo entre o solista, o coro e a orquestra. O cântico de comunhão acentua um final “Glória ao Pai, pelo séculos, Amen”. Trata-se pois de uma obra de construção complexa e exigente. Era bom que a pudéssemos ouvir um dia.