Fratelli tutti: uma nova fonte da cultura

Por Jorge Teixeira da Cunha

A “Fratelli tutti”, nova encíclica do Papa Francisco, é um texto deveras inovador em diversos aspectos. Desde logo pelo assunto. Não nos lembra nenhum texto magisterial que trate da amizade. A amizade social refere a relação horizontal entre os seres humanos, que tinha um grande relevo na cultura grega. Os cristãos preferiram quase tratar da caridade, como ligame divino da proximidade humana, nas suas diversas formas. A amizade, que os gregos chamavam “philia”,  ficou sempre um pouco na sombra. É desta que trata o Papa Francisco, retomando a tradição e temperando-a com o sal da caridade.

O texto é inovador também no sentido em que pretende promover e iluminar a relação humana de um ponto de vista antropológico e teológico. De facto, antes de ser uma norma de vida, a amizade é uma condição que necessita ser desenvolvida a partir das suas fontes. Como se sabe, o papa Francisco costuma falar da Igreja em saída. Se bem entendemos a expressão, ele pensa a Igreja como iniciação à própria vida, antes de ser mãe e mestra do mundo.

A radicação divina da amizade é feita em referência à conhecida parábola do homem caído que é socorrido por um samaritano que passou. A colocação da amizade neste contexto dá-lhe uma profundidade inaudita. Ao contrário da amizade grega que juntava dois seres humanos “semelhantes”, o caminho de Jesus pretende juntar” aqueles que são “dissemelhantes”, como é o caso do judeu caído e do samaritano compadecido. A amizade, como a fundou Jesus, é precisamente este nexo que une seres humanos diferentes, tendo em conta a inesgotável variedade das diferenças.

“Fratelli tutti” é, pois, um texto que pretende colocar-se na base da cultura humana e transformá-la em aproximação dos seres humanos. Como é sabido, as culturas contêm elementos de aproximação, mas também de afastamento e mesmo de confronto e de inimizade. O texto enumera longamente as formas de cultura que constituam outras tantas formas de alheamento e de incomunicação entre as pessoas. A crítica não é feita como lamentação pelo crescimento da indiferença ao cristianismo mas como fracasso da humanidade. Para este documento, o caminho da Igreja de Jesus é a iniciação da humanidade à vocação divina que Deus inscreveu no seu coração. Por isso, a preocupação é com a globalização que se multiplica mensagens entre pessoas indiferentes, que cria riqueza sem a distribuir com justiça, com o pluralismo cultural que se torna relativismo e gera formas de populismo que é uma manipulação da opinião para aumentar o poder de alguns grupos e assim por diante.

Reparemos que a cultura é a base da sociedade com a sua riqueza e diversidade quanto às crenças religiosas, ao património em todos os seus aspectos. É nesta âmbito que cresce a amizade social e a fraternidade. É um domínio que não se esgota na organização estatal, mas é mais amplo que o Estado. Compete ao Estado respeitar e deixar livre o funcionamento das culturas, intervindo apenas para assegurar o bem público quando ele estiver em causa. O fé tem neste âmbito o seu terreno de germinação e de crescimento. O Evangelho de Jesus é a inovação absoluta da cultura humana, uma vez que revela ao ser humano a sua condição filial em relação a Deus e a sua condição fraterna em relação aos outros seres humanos. Mas as outra religiões possuem também elementos divinos.

A este propósito, ocorre pôr em evidência a recepção que “Fratelli tutti” teve em alguns crentes muçulmanos. O pontificado de Francisco tem nessa lúcida e fraterna aproximação ao Islão um dos seus méritos mais relevantes.
Os modernos lutaram pela liberdade e pela igualdade. Essa luta é relativamente pouco eficaz, porque partiram da ideia “homo homini lupus”. O Papa Francisco lembra a todos que devemos pensar-nos como “homo homini frater”.