A violência ínsita ou escondida em palavras quotidianas

Por M. Correia Fernandes

1.A nossa imprensa, quer a mais vista lida quer a mais lida (o que não é bem a mesma coisa) tem vindo a assumir um vocabulário que pretende ser apelativo ou pretensamente expressivo, mas que apenas esconde uma mentalidade eivada de violência escondida ou disfarçada.

A força da palavra pode parecer desvalorizada nos tempos que correm, submetido ao carácter imediato da imagem. A frase tantas vezes repetida em múltiplos contextos, “uma imagem vale mais que mil palavras”, tem que ser lida e interpretada de forma valorativa da imagem mas não desvirtuadora da palavra. Na prática quotidiana dos meios de comunicação social e mesmo nas redes sociais, a imagem vem sempre associada à palavra, nomeadamente nos textos televisivos, na linguagem cinematográfica, na linguagem da banda desenhada (criada para substituir a palavra, mas que a usa inevitavelmente apara poder ter sentido e sobreviver).

Devem pois as palavras serem bem sopesadas no seu uso. Podem ser palavras ternas, ou palavras violentas. Podem ser palavras de aproximação ou de afastamento e rejeição. Podem ser palavras lúcidas ou palavras desvirtuadas. Podem ser como flores ou como punhais, como disse Eugénio de Andrade. Podem ser ocas, ser loucas ou ser mortíferas. Matam o bom nome e matam a dignidade. A dignidade do destinatário e a dignidade do que a usa.

Palavras ditas não se podem apagar nem destruir. Com elas construímos e com elas aniquilamos. Com elas apaziguamos e com elas criamos conflitos e guerras. Com seu mau uso podemos destruir tanto trabalho feito, tanta proximidade aniquilada, tantas relações construtivas. Quanto relacionamento humano se perdeu por palavras mal ditas!

Razão tem o Papa Francisco ao recomendar um conjunto de apalavras que deve cada pessoa possuir sempre no seu vocabulário usual. Sugere ele “desculpa”, “perdão”, “obrigado”…

A força destruidora das palavras foi evidenciada de forma visível no debate entre os candidatos à Presidência americana: elas tornam-se modelo para uma sociedade já de si conflituosa.

Outras palavras como dignidade, humanismo, liberdade, confiança, generosidade, paz, podem engendrar gestos de compreensão e aproximação. Palavras como racismo, violência, ataque, luta (que alguns usam como afirmação de direitos, “a luta continua”) cultivam atitudes de confronto e de afastamento, mais propícias ao conflito do que à colaboração.

Por outro lado, as palavras “sim” e “não” são ambivalentes. Pode-se dizer sim ao mal e não ao desalento. Sim à colaboração e não ao desespero ou á ambição. Há quem diga que é preciso dizer não, mas são difíceis de avaliar as circunstâncias da sua conveniência.

O escritor brasileiro João Cabral de Mello Neto usou um dia, como atitude esperançosa, que a presença do menino nascido era “como um sim numa sala negativa”. Tantas são as salas negativas da nossa vida e da nossa convivência, que mais essencial é a capacidade de dizermos sim em muitas circunstâncias, como edificação de vida nova.

Não deixa de ser significativo que todo o sentido da salvação humana se faça pela Palavra: no princípio era a Palavra: a palavra criadora e a palavra salvadora. Bem como a associação da Palavra à condição humana: o Verbo fez-se Carne…

2.Tudo isto vem a propósito da generalização de certas palavras na linguagem quotidiana e na linguagem geral da comunicação, tanto na social como na particular, nas redes sociais e na comunicação pessoal.

Para se dar conta de factos sociais, desportivos, debates políticos e mesmo o exibicionismo corporal em que se vão especializando várias publicações, incluindo as desportivas, recorre-se a expressões verbais que têm por raiz conceitos de violência.

Permitam-me lembrar alguns:

Lia-se: “Apostas disparam para 480 milhões”, “grupo TAP dispara prejuízos”, “incêndios dispararam nestes dias” – porquê o verbo disparar, de raiz violenta, para dar conta de um aumento, ou acrescento de perdas, ou mesmo da violência do fogo?

Qual o significado do verbo disparar? Será termo adequado para traduzir conceitos como  crescer desmesuradamente, aumentar substancialmente, ou multiplicar-se em quantidade ou força destruidora? Disparar tem na sua raiz significativa um sentido transitivo: quem dispara dispara alguma coisa. O inciso “os incêndios disparam” significa apenas a que o seu número aumentou consideravelmente. E o que será disparar prejuízos? Entre os sinónimos apontados nos dicionários encontramos “arremessar”, “detonar”. O Dicionário da Academia fala mesmo em “desferir palavras agressivas contra alguém”. É pois este conceito de agressividade que o termo contém e transmite.

Outro verbo caro à “originalidade”  da linguagem mediática é arrasar. Lê-se “F. arrasa em bikini”. Qual o significado de arrasar? Este é um verbo das revistas sensacionalistas e das páginas sensacionalistas de alguns diários (os quais se vão imitando uns aos outros). Alguém se sentirá arrasado por causa de um biquíni ou do seu conteúdo?

Vamos ver os sentidos de arrasar: encontram-se destruir, desmoronar, arruinar, aniquilar, abater. Será isso?

Ouro vocábulo também ao gosto de alguma imprensa, particularmente desportiva, é o verbo esmagar: o clube A esmagou o adversário B. Sabemos que é sentido figurado, mas o uso da palavra violenta induz violência. Vencer um adversário nunca é esmagar, pode apenar significar maior competência ou esforço. Infelizmente a presença da violência traduzida nesta palavra é a atitude do muito relacionamento entre adeptos e clubes desportivos, quando o desporto devia ser caminho de aproximação e salutar convivência.

3.Lembram-se daquele verso de Sophia, que dizia “Lavaremos as nossas mãos de desencanto e poeira”? Pois agora haveria que propor algo de semelhante, como: “Lavemos a nossa linguagem de palavras violentas”, sobretudo as aparentemente inofensivas, que são as piores. O pior mal é aquele que não se vê, ou se esconde, ou que não se torna perceptível.  Falar de arrasar ou disparar ou esmagar induz gestos e mentalidades violentas ou incapazes de avaliar  positivamente as ações,  os acontecimentos e as pessoas.

Lavemos então a nossa linguagem de terminologia violenta.