Por M. Correia Fernandes
Com o intervalo de quatro dias, o Papa Francisco fez publicar duas mensagens: 1) a carta apostólica Sacrae Scripturae Affectus (“O afeto pela Sagrada Escritura”), simbolicamente publicada em 30 de setembro, dia em que a liturgia da Igreja celebra a memória de São Jerónimo, este ano no 16.º centenário da sua morte, ocorrida em Belém, no ano de 420; 2) a Carta Encíclica “Fratelli Tutti” (Todos irmãos), assinada com a data de 4 de outubro de 2020, dia litúrgico dedicado a S. Francisco de Assis.
Com o primeiro texto , o Papa quis valorizar o conhecimento, a leitura e a descoberta da dinâmica cristã da leitura da Bíblia, como afirmou aos peregrinos de língua portuguesa, recomendando-lhes: “Façam da Bíblia o alimento diário do diálogo com o Senhor”.
Porém, o texto central já anteriormente anunciado em várias intervenções é a nova encíclica, no seu sentido de mensagem à Igreja universal.
A sua dinâmica mais ampla e profunda está contida no subtítulo da mensagem: “sobre a fraternidade e a amizade social”.
Tem sido já objeto de atenção especial o facto de que os ensinamentos do papa Francisco acentuam um dado sempre renovado: a atenção às realidades e problemas do mundo moderno. As suas palavras soltam-se para além do universo eclesial, para assumirem a dinâmica do mundo atual, científico, económico, cultural e social. Neste domínio a sua reflexão prolonga as dimensões da doutrina social da Igreja, cuja atualidade se tem revelado como dinâmica orientadora para o novo tecido económico e social do mundo moderno. A incidência da celebrada encíclica “Laudato Sì” (2015) veio de encontro às categorias mais referenciadas da nossa condição humana atual, na sua dimensão da ecologia da Natureza e da ecologia do equilíbrio da pessoa humana. Esta atual Carta introduz uma nova derivação de sentido: sai da “casa comum” do planeta para a casa da sociedade e da convivência humana.
A tradição moralista acentuava os valores da amizade como o universo mais rico e atraente das relações pessoais. Na linguagem da amizade valoriza-se a relação individual: basta ler as definições que se encontram nos livros e nas redes sociais.
Agora o Papa Francisco muda-lhe os horizontes: “As questões relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações” (n.5). Por isso salienta a sua “dimensão universal, a sua abertura a todos”, inserindo-a mesmo no contexto do Covid-19, apelando a uma comunidade que nos apoie, nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente (n.8).
Na primeira parte, Francisco analisa os contextos do mundo atual: as guerras, os conflitos, os medos, o progresso e a globalização sem rumo certo, os flagelos da História, os atentados à dignidade humana, a “ilusão da comunicação”, a agressividade das linguagens e dos fanatismos, as limitações de uma informação sem sabedoria, o desprezo da identidade cultural que conduz è alienação. No entanto, lança um apelo de esperança e dos gestos de espírito fraterno: “caminhemos na esperança” (n. 54-55).
Partindo de várias leituras de episódios evangélicos, lança propostas e um amor universal que promove as pessoas, a promoção do bem moral (a solidariedade, a busca de atitudes éticas, de bondade e honestidade), retomando dois temas da doutrina da Igreja: a função social da propriedade e a revalorização da proposta da liberdade, igualdade e fraternidade, e de sociedades abertas que integrem a todos (n. 97-126).
O capítulo “Um coração aberto ao mundo inteiro” acentua a colaboração entre os universos locais e o horizonte universal, a política da boa vizinhança entre os grupos e as tradições históricas, concluindo: “Hoje nenhum Estado nacional isolado é capaz de garantir o bem comum da própria população” (n. 152).
Na abordagem da dimensão política das sociedades, analisa uma realidade hoje em voga, os chamados “populismos”, as visões liberais ou neoliberais, concluindo com duas ideias: a necessidade da ação política de nobre sentido, e uma caridade eficaz que reúne e integra, e recorda o seu encontro com o Grande Iman Ahmad Al Tayyeb, e a declaração de ambos para uma política internacional e economia mundial que se comprometam “na difusão da tolerância, da convivência e da paz” (n.192).
Os três últimos capítulos constituem a proposta final, conforme o título inicial: “Diálogo e amizade social”, um “novo encontro” nas sociedades humanas a partir da verdade e o papel das religiões “ao serviço da fraternidade no mundo” (n.220-287).
Perante as guerras, afasta também a pena de morte, em nome da dignidade humana e das capacidades e força do perdão: uma cultura do encontro, citando Vinícius de Moraes: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”.
Ao recordar Francisco de Assis, associa-lhe nomes como Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Ghandi e recorda Carlos Foucaud, como sinais da dinâmica do espírito cristão. E termina como habitualmente com uma prece.
Voltando ao início destas palavras: o que mais nos deve espantar e admirar no papa Francisco é a sua capacidade de, do alto dos seus próximos 84 anos em 17 de dezembro, se mover intelectualmente dentro das mentalidades e dos acontecimentos atuais, e de procurar mover os acontecimentos e as teorias e práticas das sociedades de hoje no universo alargado e universalizante do espírito cristão, dos seus parâmetros espirituais e das suas dimensões humanas e históricas. Ele está onde estão as vicissitudes da História humana.