Por Duarte Ribeiro
O tempo vai traçando o seu lugar, revelando com maior nitidez convicções quase dogmáticas que se vão falando em grupos especialmente reservados. A pandemia pôs a nu os aditos da economia permanentemente crescente. Chega-se a considerar útil e até intelectual argumentar a necessidade da economia em constante estado de ebulição para uma maior eficácia à resposta social. Uma realidade não poderá desvalorizar a outra. Se a economia agita as gentes, a socialidade imprime-lhe caráter e fá-la funcionar. Paremos um pouco. O livro sapiencial do Eclesiastes revela que “Quem ama dinheiro não se satisfará com dinheiro. E quem amou lucro em abundância? Pois também isso é vacuidade”. A temporalidade cíclica demonstra-o. Só quando é impossível perceber (ou se rejeita perceber) isto mesmo, se poderá argumentar que a sociedade apenas sobreviverá com uma economia sobrevalorizada e desmedida. Enquanto não percebermos a economia como dom, o sentido social não terá lugar no mundo em que vivemos. A pessoa sai do ventre da sua mãe despojado de adornos. Apenas o envolve o odor do vernix sebáceo que o protege. Em cada dia que se segue revela-se o dom de Deus a si reservado. A economia é dom de Deus para que o homem se possa alegrar pelo seu esforço e pelas suas conquistas, tomando para si parte e despojando-se dos excessos para a ajuda ao outro.
Não é fácil a Palavra encontrar lugar, como é difícil as gentes fazerem-se ouvir. Não é de hoje. Não creio que se alcance em tempo que a história possa escrever. Mesmo o grito não é suficiente para que a Palavra se ouça. O tom e o modo de dizer as palavras, desde que consigo pensar com clareza, não têm sido bastante para abrir o espetro da realidade. Uma realidade notavelmente próxima e obscura. Vivemos desidratados pela obsessiva leitura fácil de números justificativos — o mesmo que justifiquem algo —, provocando pensamentos retóricos que respondam aos avisos de homens e mulheres alheios aos interesses menores de uma reduzida vil sociedade.
Se se pensar uma verdadeira cultura económica de participação, a sociedade tornar-se-á mais ágil, promotora, homogénea e, sobretudo, equitativa. Contudo, haverá abertura da sociedade económica para acolher no seu espaço a Palavra que eleva todos e cada um a uma vista alcançável apenas com o coração? Poucos foram os tempos em que o grito era uníssono e tão pouco audível. A estratégia de potência(s) tem tamanha capacidade de deturpar toda uma voz que abafa qualquer capacidade de horizontes largos e oportunidades únicas. O tempo que medeia entre a palavra da última (mas ainda recente) crise económica e o grito deste novo tempo, a nascer lentamente, é de um profundo adormecimento social. Vivemos vigilantes para a consolidação da economia global, mas descuramos a toda a realidade que nos circunda, a pessoa e o que ela implica. Mas a Palavra é capaz de pronunciar-se mais alto que o grito. A todo o custo convencemo-nos que a “situação parece no mínimo melhor do que alguma vez esteve” (Douglas Murray, 2020). E estaria, se todos o desejassemos.
Vivemos eufóricos com a simplicidade das palavras fáceis que porque disseminadas ao limite, tornam-nos zombies e anestesiados. O valor maior perde-se nas sombras da aparente estabilidade. Há muito mais valor para além dos números. Continuamos a sobrevalorizar o desejo e alegramos a mente com zeros crescentes. Emprestamos o nosso discernimento aos números e reduzimos a socialidade a um olhar passageiro. Neste tempo de informação massificada, as palavras fluem abandonadas por todos os lugares. Este é um tempo que exige paragem, vigilância, escuta, encontro com o que está para além de nós, de cada um de nós. E cada um possui o elemento base para combater um dos maiores danos colaterais desta pandemia: a atenção ao outro.
A Palavra não faz parte do pensamento. A Palavra é. A Palavra acompanha o grito e aguarda. Não é atacante. É agente, aquele que age. Fala sozinha com o pensamento ao ponto de comunicar-se a ela mesma. Façamo-la parte de nós para consolo do outro.