Esperando uma nova encíclica de inspiração franciscana

Por M. Correia Fernandes

É sabido no universo cristão que o Dia Mundial da Paz foi proposto pelo Papa Paulo VI, em 1967, para ser celebrado em 1 de janeiro de cada ano. Lembramos que nesse dia foram propostas entre nós e na Igreja inteira homilias programáticas dos Bispos das diversas dioceses. Entre nós ficaram célebres as Homilias da Paz do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, tanto antes como depois da revolução de abril de 1974, salientando-se a programática e decisiva “Pela Paz e reconciliação entre os portugueses”, pronunciada na catedral do Porto em  1 de janeiro de 1975, publicada pela Voz Portucalense editada depois pela Livraria Telos, com que procurava pôr equilíbrio num ambienta revolucionário e de luta pelo poder que se havia instalado. Por sua vez, em 30 de novembro de 1981, a Assembleia geral das Nações Unidas proclamou o Dia Internacional da Paz, como proposta de programas de cessar fogo e da não violência em todo o mundo. Segundo recorda agora  António Guterres, Secretário Geral da UNU, este dia é dedicado “a apelar às partes beligerantes em todos os lugares a depor armas e a trabalhar em prol da harmonia”. Esta é uma dimensão necessária, mas não suficiente: a paz é mais que ausência de lutas e conflitos dos estados e dos países: deve ser um projeto da alma e da sociedade humana, em todas as suas relações e atitudes, fundadas no espírito fraterno.

Foi este o tema proposto e escolhido também  pelo papa Francisco para a sua nova encíclica, cuja publicação está se anuncia para o dia 4 de outubro deste ano de 2020, segundo  é referido neste dia 21 de setembro, em que Dia Mundial ou Dia internacional assumem a mesma força e o mesmo sentido: a paz é um dom universal, um valor social e humano, um valor bíblico e teológico, um valor messiânico e construtor de humanidade. Por isso é deprimente que todos os países invoquem a paz para a seguir edificarem a guerra, em formas sofisticadas de violência e múltiplas modalidades.  Não é apenas o troar de canhões ou silvidos de mísseis, movimentos de submarinos, contratorpedeiros ou aviões de combate. Há ainda as formas de guerra química, como a que padecemos, e há as formas de guerra psicológica e política, a sobretudo as guerras do poderio económico, que são as geradoras de todas as outras.

É então neste contexto de conflitos pandémicos e de esquemas de ambição e de domínios económicos que o papa Francisco retoma o tema da sua encíclica de 2015, a que deu o nome de “Laudato Sì”, de inspiração na oração de Francisco de Assis, homem de paz e homem pacificador, um título o menos racional e teológico que houvera que esperar, para apresentar um programa de equilíbrio humano e equilíbrio da natureza, mas que mereceu a atenção e mesmo o aplauso do pensamento universal, entre a Igrejas cristãs, espíritos de outras religiões e espíritos marcados pelo esforço ecológico.

Agora anuncia Francisco uma nova encíclica, a que será dado o nome também inspirado em Francisco de “Fratelli tutti” (“Todos irmãos”). A sua inspiração pode encontrar-se no espírito da viagem que o Papa Francisco realizou a Abu Dhabi, onde assinou com o Grão Imã de Al-Azhar, Ahamad al-Tayyib, um Documento sobre a “Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da convivência comum”.

A proclamação oficial da nova encíclica, segundo informação da Prefeitura da Casa Pontifícia, será assinada em Assis, na basílica dedicada a S. Francisco, em cujo túmulo presidirá a uma celebração eucarística. A deslocação será feita  “em privado tendo em conta a situação de saúde” e “sem a participação de fiéis”.

Importa recordar, como faz Bento Domingues (Público, 20 de setembro), que para a sua encíclica “Laudato Sì”, Francisco se fez assessorar por um grupo de cientistas, um grupo de teólogos, outros pensadores que conduziram à redação em que a sua dinâmica de Pastor Universal assumiu o texto final.

Houve pois muito trabalho, muita reflexão, muita presença do pensamento humano, muito sentido do espírito cristão que Francisco quis conduzir a uma dimensão universal, de ecologia da natureza e de ecologia da pessoa humana (dado essencial e talvez menos salientado da encíclica).

O título proposto pelo Papa “Fratelli Tutti”, tal como aconteceu com o “Laudato SÌ”, que ele que seja  assumido como título universal do documento em todas as línguas, para sublinhar a relação inspiradora com o espírito de S. Francisco de Assis.

É pois este sentido da fraternidade e equilibrada convivência social e cultural (a cultura deve desempenhar aqui um papel central), que o papa quer que se exprimam em gestos universais de homens e mulheres de qualquer nação ou cultura, que confere um sentido mais alargado e profundo à sua mensagem, que se aguarda com a natural esperança de que contribuirá para uma humanidade mais equilibrada, mais colaborante, menos beligerante, mais aberta a valores essenciais da pessoa e da sociedade humanas, ou segundo afirma Francisco, ”aquela pertença comum e abençoada” ao mesmo universo e comunidade humana.

Assim a aguardamos na esperança de que se lhe abram os corações de comentadores e analistas, dos movimentos sociais e do universo cultural do nosso mundo de hoje.