
Por M. Correia Fernandes
Recordo, datada de 23.11.2017, através de uma dedicatória do autor, a oferta generosa do volume “Porto: nos dias do meu tempo”, de Hélder Pacheco: “Para a Voz Portucalense, que há muitos anos me habituei a ler (com atenção) na Biblioteca do Instituto D. António Ferreira Gomes, a minha homenagem”. Meses antes havia falecido D. António Francisco dos Santos. Esta dedicatória lembrava certamente a sua memória.
O Porto tem reconhecidamente numerosos dos mais notáveis escritores que retrataram, por múltiplos e diversificados olhares, os seus dramas ao longo dos tempos e que na cidade, nos seus espaços e nos seus movimentos culturais beberam a sua inspiração. Lembramos Almeida Garrett, Alexandre Herculano (os tempos dos movimento liberais), Ramalho Ortigão, Camilo Castelo Branco, Guerra Junqueiro, António Nobre, Antero de Figueiredo (1866-1953), mesmo José Régio (1901-1969) e tantos outros. Dos recentes mais ilustres, há que lembrar Eugénio de Andrade (1923-2005), Agustina de Bessa Luís (1922-2019), Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), Vasco Graça Moura (1942-2014), Manuel António Pina (1943-2012), e os felizmente presentes nestes dias que correm, como Fernando Echeverría (n. 1929), Fernando Guimarães (n. 1928), Mário Cláudio (n.1941), e muitos que se vão afirmando e de quem ouvimos e lemos novas. Sem esquecer as antológicas imagens dos filmes de Manoel do Oliveira (1908-2015).
Mas o Porto, que não surge tanto nas canções como Lisboa ou Coimbra (apesar de um recente “Porto sentido”), tem sobretudo os seus cronistas de perspicaz atenção, que veem e leem a cidade nos seus meandros mais significativos e exemplares, entre a história, os monumentos, a tradição e sobretudo as gentes. E destes há dois a quem a Voz Portucalense sempre mereceu especial atenção: Germano Silva e Hélder Pacheco, que motiva esta crónica.
A cidade do Porto possui duas editoras, que na sua voluntariedade e dinâmica resistem a quedas como outras com que temos sido recentemente confrontados. Uma é a Modo de ler, atenta ao melhor que o espírito humanista procura valorizar no tecido social. Outra é a Afrontamento, que tem desenvolvido desde há longos anos uma devotada e ampla atenção às causas do saber, da investigação e de novas dimensões da literatura e do pensamento. E também ao universo citadino, como prova esta edição Porto: nos dias do meu tempo, de Hélder Pacheco.
Claro que o Porto é também sede de outra das maiores editoras nacionais, que dos textos escolares, cujo mérito é sobejamente reconhecido, passou também ao alargamento a temas gerais, e aos conteúdos digitais, constituindo um amplo grupo editorial de âmbito nacional, o grupo Porto Editora.
Um Porto dos dias e dos tempos
Lembremos que o autor desta obra Porto: nos dias do meu tempo, publicada nesse ano de 2017, é natural da freguesia da Vitória, no coração do Porto (1937). Dedicou-se ao ensino, nos âmbitos da História Social e cultural do Porto e foi Quadro Técnico do Ministério da Educação (1960/1993). Como investigador nos domínios da cultura popular, tornou-se apelativa a sua ação como cronista do Jornal de Notícias e de outras publicações ligadas à história da cidade e da sua população. É autor de ensaios e estudos sobre Património Cultural editados em jornais e revistas de todo o país. Nos últimos anos tornou-se colaborador do Instituto Cultural
D. António Ferreira Gomes, que o homenageou em 2019, contando com a presença do presidente da Câmara Municipal, Rui Moreira (ver VP, 6 setembro 2019).
O conteúdo deste livro orienta e permite ao leitor o conhecimento de uma história da cidade, mostrada não a partir das estruturas municipais ou dos seus dirigentes, com todas as iniciativas e todos os méritos que possam ter, mas a partir das pessoas e dos grupos populacionais da cidade, da sua cidadania e da sua criatividade, e a partir igualmente de um acervo de imagens que revelam as dimensões visuais de uma cidade que deslumbra os turistas que recentemente a veem descobrindo.
Esta dimensão do olhar sobre as pessoas e as instituições, sobre os espaços originais e os tempos vividos, pode bem discernir-se e ser comprovada na análise de alguns dos títulos do volume agora apresentado: “Uma linda freguesia”, “na Pontinha, a cultura”, “vizinhos e vizinhanças”, “contra o esquecimento”, “quadras são-joaneiras”, “verbos de antigamente”, “romanceiro das ruas”, “reconciliar o quotidiano”…
Encontramos assim temas do saber e da cultura popular, que é a que lança as raízes e estimula o conhecimento para a cultura erudita, como é “o coração tripeiro”, a alma dos espaços, das paredes e das árvores, os projetos de “melhorar a cidade”, na busca de “leis apropriadas”, na valorização do artista e do cidadão: uma panóplia de temas que mostram o sentido humanista da valorização de pessoa e da convivência humana¸ “escritos de liberdade de um indígena da Vitória”, como escreve na apresentação.
Não me levará a mal Hélder Pacheco que aproveite esta crónica para lembrar o outro amigo, Germano Silva (n. 1931), que continua a recordar-nos semanalmente a história e as vivências da cidade, nas suas crónicas dominicais do Jornal de Notícias (a que dedicou longos anos a sua atividade de jornalista), que são história e cidadania, e que mereceu o doutoramento “Honoris causa” pela Universidade do Porto em 2019. Milhares de pessoas já percorreram com ele a ruas da cidade, descobrindo as suas raízes e os seus escondidos encantos. Muitas da suas crónicas encontram-se também reunidas em livros, de que destacamos “Profissões (quase) desaparecidas”, publicado já neste ano de 2020.
São duas figuras do Porto, sem os quais a leitura e o conhecimento da cidade, em toda a sua reconhecida grandeza, não seria o mesmo: seria mais pobre e limitado. Sem desprimor para muitos outros trabalhos sobre a cidade publicados por olhares igualmente reveladores.
Que esta dedicada atenção inspire os responsáveis do presente a um cuidado pela cidade que mantenham a sua alma, que são os cidadãos que a habitam, mais que os que passam por ela nas levas turísticas ocasionais. Edifique-se uma cidade de residentes, não de passantes.