Editorial: A geração pós-pandemia

Por M. Correia Fernandes

Um dos maiores dramas da sociedade nos próximos tempos (como já acontece hoje) é a de reorganizar os universos pessoal, económico, social, cultural, de convivência e de vivência espiritual, na sequência das contradições que advieram, por boas e más propostas de pretensas soluções, do universo contraditório de regras e imposições.

Curiosamente é o Papa Francisco, como sempre atento à dimensão social das suas declarações pastorais, que centra o problema nos seus contornos mais rectos, ao afirmar na alocução da audiência geral de 26 de agosto de 2020: “A pandemia pôs em relevo e agravou os problemas sociais, sobretudo o da desigualdade. Alguns podem trabalhar em casa, enquanto para muitos outros isso é impossível. Certas crianças, apesar das dificuldades, podem continuar a receber uma educação pela escola, enquanto para tantíssimas outras esta é bruscamente interrompida. Algumas nações poderosas podem emitir moeda para enfrentar a emergência, enquanto para outras isto significaria hipotecar o futuro”.

Aqui notamos as consequências mais graves: as desigualdades sociais, o travar a centralidade da educação na família e na escola, a penúria económica forçada das pessoas, das famílias, das sociedades e das nações mais débeis. Acrescenta o Papa: “estes sintomas de desigualdade revelam uma enfermidade social; é um vírus que nasce de uma economia doente. Devemos dizê-lo com simplicidade: a economia está doente”.

Apelando aos valores ambientais, afirma: “A desigualdade social e a degradação ambiental seguem lado e lado e têm a mesma raiz: o pecado de possuir, de querer dominar os irmãos e irmãs, de querer dominar a natureza e o próprio Deus”.

A defesa da saúde pública foi constituída em dogma absoluto. Talvez isso tivesse sido necessário, mas fez esquecer as outras dimensões do problema: o equilíbrio económico das famílias, a degradação da economia, o abandono ou destruição das empresas, sobretudo das mais débeis e que curiosamente são o sustentáculo do tecido social. Os oportunismos económicos, que trabalham clandestinamente no seio da sociedade como formigueiros que a revolvem, aliados a outros oportunismos políticos e sociais sempre emergentes nestes casos, criaram novas formas de relacionamento de bens e ações que desfiguram o tecido produtivo de uma sociedade. Tudo isso se torna legítimo aproveitando a necessidade da saúde pública.

Bem o afirma Francisco: “Quando a obsessão de possuir e dominar exclui milhões de pessoas dos bens primários; quando a desigualdade económica e tecnológica é capaz de lacerar o tecido social; e quando a dependência de um progresso material  ilimitado ameaça a casa comum… não podemos ficar a olhar… devemos agir todos juntos”, lembrando ainda a atenção às crianças, sem alimento, sem escola, sem educação.

A proposta de solução pode ser acusada de meramente espiritual, de  meramente bíblica ou evangélica. Mas ela está no cerne de todos os projetos humanos: “A esperança cristã, radicada em Deus é a nossa âncora”. O mundo ainda não o entendeu.

E acentua ainda outra ideia, que importaria servisse de meditação e orientação: “De uma crise não se pode sair iguais: ou saímos melhores ou saímos piores”.

Que estamos nós a fazer para sairmos melhores da crise? Quando se agravam conflitos inúteis, quando se exacerbam relacionamentos que deveriam ser de aproximação e colaboração, quando se vigorizam interesses pessoais e de grupos – como podemos sair melhores?

Haverá uma geração pós-pandemia que aprenda os remédios, que não sejam apenas os fisiológicos (como vacinas ou medicamentos), mas os da colaboração, do sentido da valorização social das profissões, das estruturas que fabricam e repartem os bens para benefício comum e o da edificação de uma economia de partilha e de entreajuda?

A celebração do 5.º aniversário da encíclica “Laudato Sì” constitui mais um conjunto de propostas, quer do próprio Papa, quer da Conferência Episcopal, quer do Bispo do Porto, no sentido de tomarmos  este tempo como valorização da ecologia da natureza, da casa comum, bem como prioritariamente a ecologia pessoal, da valorização dos nossos ideias e dos nossos procedimentos.

Se não sairmos melhores, sairemos piores. Tememos que seja este o caminho que está a ser trilhado. Que se eleve um novo ideal de solidariedade e construção, e não de “violência e ruína” como se queixava Jeremias.