
Por M. Correia Fernandes
Muito se tem discutido, com ou sem razão, sobre o acordo ortográfico de 1990.
Pouco se tem referenciado relação entre a pronúncia da língua portuguesa e o dito acordo. Em tempos de exames de português do ensino secundário, valerá a pena debruçar-nos um pouco sobre o relacionamento entre a escrita e o uso da língua coloquial, e sobretudo a correção da nossa forma de a usar através da pronúncia, a sua expressão mais frequente.
O princípio em que se fundamentou o acordo ortográfico de 1990 foi o de se escreverem as consoantes mudas que se pronunciam, e se omitirem na escrita as consoantes mudas quando não se pronunciam (geralmente o c e o p).
Pode parecer um princípio admissível, pela suposta vantagem da simplificação. Porém simplificar nem sempre é tornar mais expedito ou mais adequado.
1.As palavras não se escrevem como se pronunciam. Por exemplo numa frase vulgar como “Os barcos sobem os rios”, os sons representados pela letra s soam de forma diferente em sobem ou em barcos, dado que os s finais soam sh. Assim se conhece logo um português que tente falar espanhol, ainda que as palavras sejam as mesmas, como por exemplo “ pensamentos”, que em espanhol soa pensamentos, com o som s no final (ou sem qualquer s na variante andaluza) e em português soa pensamentos, com sh no final. Assim se conhece logo um transmontano que liga o final das palavras em j, como em os assuntos, que soa ojassuntos.
As nasais são escritas diferentemente em palavras como pão, cantam ou sentem.
2.O ortografia é pois uma convenção, e por isso deve servir para se distinguirem as palavras e não para as confundir. E sobretudo para tornar rigorosos os significantes para que se tornem compreensíveis os significados.
É neste sentido que, como já tem sido referenciado nestas páginas, há palavras em que o acordo ortográfico deveria ter servido para valorizar a distinção de muitos vocábulos em que a grafia fosse orientada para ajudar a pronunciar as consoantes, tornando-as de mudas em pronunciadas, dado que a diferença de grafia introduz sentidos diferentes e corresponde a significantes diferentes.
Analisemos alguns exemplos, entre muitos outros possíveis, dado que o vocabulário da língua portuguesa dispõe felizmente de um amplo e rico leque de designantes.
Contrato e contracto – segundo o princípio da supressão das consoantes mudas, deveriam escrever-se da mesma forma. Designam porém realidades diferentes, com ou sem consoante: contrato traduz um elemento jurídico, contracto significa contraído, aplicado tanto à redução de palavras como ao esforço muscular. Um contrato de trabalho é diferente de um músculo contracto. O c devia ser pronunciado em contracto.
Repto e recto e a escrita reto – eis três formas de significado muito diferente: repto traduz desafio, recto traduz algo direito ou justo, e traduz a também a parte terminal do intestino grosso. Nas formas repto e recto deveria pronunciar-se o p e o c, evitando a escrita reto.
Retratar e retractar – a primeira forma traduz a ação de elaborar um retrato de alguém ou de um acontecimento; a segunda forma traduz a modificação de opinião ou correção de afirmação ofensiva ou errónea. Na forma retractar deveria ser pronunciado o c.
Óptico e ótico – a primeira forma refere-se a olhos, ao olhar; a segunda refere-se ao espaço auditivo. Optometria é diferente de otometria. Dever-se-iam distinguir tanto na escrita como na pronúncia. O mesmo se diga da forma sector, em que a presença gráfica do c deveria ter sido orientada para a sua pronúncia, como em facto e factor, acto e actor, como nas formas retractar, repto, recto. E em formas como concepção, percepção, deveria a grafia conduzir à pronúncia, como acontece no português do Brasil. Também será de valorizar a semelhança entre táticas e técnicas, sugerindo em ambos os casos tácticas e técnicas.
Já se ouve pronunciar característica, mas menos carácter: em ambos os casos deveria ser pronunciado o c.
Adição e adicção, adido e adicto – São realidades diferentes: adição traduz soma, e adicção traduz prisão a uma dada prática (às drogas, ao álcool, aos jogos, às imagens).
Caso semelhante podemos encontrar em catar (procurar, retirar) e captar (apanhar, retirar).
Grave também entendo que sejam as pronúncias erradas, generalizadas na nossa linguagem radiofónica e televisiva, onde se ouve a inexistente rúbrica em vez de rubrica, júniores e séniores (acentuadas na antepenúltima sílaba!) em vez de juniores e seniores. Ao invés, logo se ouve pronunciar juniór e seniór em vez de júnior e sénior.
Mais estranho ainda é que continuemos a ouvir alegremente púrque em vez de porque e xesso em vez de excesso, xêntrico em vez de excêntrico (e formas similares).
Outro erro inconcebível é o abuso de expressões do género tratam-se de situações. É uma concordância de sentido, mas gramaticalmente incorreta. As situações tratam-se, mas trata-se de situações, de temas ou assuntos, forma impessoal do verbo.
Há que promover uma expurgação do abuso do estrangeirismo, que se banalizou perigosamente. Se inventamos em português, segundo a regra, teletrabalho, porque continuamos a escrever Take-way, offshore, startup, streaminge tantas outras formas desnecessárias em português, como e-mail, podendo generalizar-se a fórmula “correio electrónico” (com a pronúncia do c!)
Há que lembrar aos tecnocratas a substituição virtuosa para a língua portuguesa de expressões inglesas (geralmente americanas) que só os entendidos entendem e que se transcrevem na imprensa como se fossem expressões da nossa língua, como streaming, lobbying, rock star, cool, cold calls, startup, e um volumoso exército delas.
Seria uma atitude de profilaxia social no campo linguístico.