Um teólogo (des)embrulhado na (p)an(d)emia (4)

Foto: João Lopes Cardoso

Por Alexandre Freire Duarte

Parece cada vez mais provável que os (des)confinamentos, profiláticos e/ou terapêuticos, passem a seguir o modelo “pisca-pisca” das luzes de Natal. É possível, assim, que eu volte a ouvir piadas acerca de conseguir dar a volta ao quarteirão em quase oitenta dias, devido a fazê-lo de mão dada com o meu filho de dois anos. Foi daqui que surgiu esta reflexão.

Preocupa-me que nos possamos esquecer que, enquanto religião incarnada, o Cristianismo precisa de ser vivido e celebrado de modo incarnado. Nada de se separar a dimensão da peregrinação interior de cada crente, das dimensões comunitárias e práxicas da sua vida. Não havendo o cuidado de “nivelar a curva” desses três elementos, acabar-se-á por resvalar, pelo “pico” da facilidade abaixo, para a escravizante tirania das perceções meramente emocionais. Aquela tirania que fabrica enegrecedores “fatos isolantes” dos demais (cf. 1Jo. 2,9).

Daqui também brota a triste ideia de que pode haver uma fé cristã desconceptualizada e deslexicada. Nós, cristãos, devemos conhecer as palavras (e, mais ainda, os seus significados) que dizem, eclesial e nuclearmente, a nossa fé. Se isto não acontecer, muita mais gente não hesitará em “importar” tais termos para lhes darem novos e distorcidos sentidos, desbaratando a capacidade de entendimento (e aceitação) da mensagem de Jesus. Eis o aborto a ser misericórdia; a destruição de propriedade caridade; a eutanásia compaixão; a “Festa do Avante” e esperança; a violência social libertação dos cativos; etc. Perdoem-me a caricatura: é como usar “ventiladores” para ajudar a inalar “venenos”. Aquele invertebrado moral que perguntou «o que é verdade?» (Jo. 18,38), estará a rir-se com, no dizer de Charlotte Brontë, o seu menear «frio e esmagador / (…) calcando corações como outros calcam porcelana» (“O sonho da esposa de Pilatos”).

Tal uso arrivista daquelas palavras, aponta para outro facto. Muitos batizados, tendo visto as suas vidas cristãs ser reduzidas a somas de “condutas”, não logram destrinçar a diferença concreta – presente na “demanda do sempre maior, efetivo e gratuito amor crístico” (cf. Jo. 13,34; 1Ts. 3,12; 1Cor. 13,5; 1Jo. 3,18) – entre o agir cristão e o agir de quem não é cristão. Se o Cristianismo se reduzir a “fazer coisas”, então para que se há de ser cristão, seguindo a um Jesus (realmente) pobre e humilde, se um não-cristão, seguindo aos diversos Espártacos (falsamente) poderosos e ricos dos nossos dias, as pode fazer com maior brilho e eficácia?

Ainda que não abandonem a Igreja, o mais provável é que tais cristãos acabem por se contentar, cada vez mais, com uma atemorizada vida sacramentalizada, em vez de ambicionarem uma ousada existência evangelizada, alicerçada numa intencional experiência (pessoal e em Igreja) do Deus-Amor. Uma vivência que, recordando não haver vida em Cristo senão em estado de doação de si, os leve a uma missionação messiânica que ajude a trazer o Céu a este Mundo (cf. Mt. 6,10).

Persistindo em tal “contentamento”, muitos tornar-se-ão peças de uma cega terraplanagem cultural que, apesar de todos os avisos da Igreja, está a levar a sociedade a ser como um “avião” em “queda espiral”. E isto, uma vez que arrancaram-lhe uma das suas “asas”: a família em que (mesmo sem idealizações) a fé era vivida no seio da complementaridade co(m)-participativa dos sexos. Paradoxalmente, também dessa “queda” acusam a Igreja, contudo, como diz Robert Falk no poema “Mudança”, «isso tudo, / e mais tudo como isso, / são medalhas para o meu amor, / que em tudo animam / a esperança minha».