Publicadas atas do Colóquio sobre D. António Barroso

A Universidade Católica Portuguesa, através do seu Centro de Estudos de História Religiosa, acaba de publicar as atas do Colóquio “Entre a Monarquia e a República, os tempos de D. António Barroso no centenário da sua morte (1918-2018)”. Um evento sobre o contexto histórico e mentalidades no tempo de D. António Barroso, bispo do Porto, que juntou especialistas e historiadores no Paço Episcopal do Porto em junho de 2018. A coordenação deste trabalho esteve a cargo dos professores Adélio Abreu e Luís Amaral.

Entre a Monarquia constitucional e a Primeira República viveu António Barroso. Nascido em Remelhe, Barcelos, em 1854, frequentou o Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim, antes de ser ordenado presbítero, em 1879, e partir como missionário, ao serviço do Padroado português, para Angola e Congo, Moçambique e Meliapor. Aí se encontrava quando foi nomeado bispo do Porto, diocese que pastoreou entre 1899 e 1918, com um estilo missionário e uma irredutível firmeza, esta no contexto subsequente à afirmação da República, em 1910.

Por ocasião do centenário da sua morte, entendeu a Diocese do Porto, secundada desde o primeiro momento pelo apoio científico do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, promover um colóquio com o objetivo de abordar a vida e a ação pastoral de D. António Barroso, inscritas no cenário político, social e eclesial do seu tempo, entre a Monarquia e a República. Todo o programa do encontro científico foi pensado no sentido de estudar a multifacetada personalidade do prelado, promovendo uma atualização do conhecimento já produzido e abrindo caminho para novas investigações. Deste modo, procurou‑se uma aproximação à figura em estudo, partindo de sucessivas contextualizações, que nos permitem aceder melhor ao seu pensamento e à sua intervenção pastoral e política, desenvolvidas em época de particular tensão e mudança. Na realidade, D. António Barroso, pelo ativo papel desempenhado em diversos cenários do universo português de então, constitui uma dessas poucas personagens que parecem sintetizar em si todo um tempo.

Para além do diálogo e da discussão desenvolvidos ao longo do colóquio, com o presente livro e, sobretudo, com os estudos que o mesmo contém, procura‑se contribuir para um conhecimento que perdure e para que se prolongue a reflexão sobre o prelado e o Portugal coevo.

O primeiro texto é assinado por Jorge Fernandes Alves, a quem coube a intervenção inicial do colóquio. Percorrendo o século XIX português, deixa claro o complexo processo de instalação e institucionalização do regime liberal.

A instabilidade política resultou na recorrente dificuldade em encontrar equilíbrios e diretrizes, tanto nas instituições do Estado e no interior da estrutura eclesiástica, como na relação entre ambas. Neste contexto foram vários os tempos que se sucederam, invariavelmente de mudança e de fratura maior ou menor, no interior da sociedade e dos vastos territórios então controlados pela coroa portuguesa. Neste mundo viveu António Barroso, que não pôde deixar de compreender e de se mover em cenários nos quais a missionação e a ação da Igreja, tanto no espaço colonial como na metrópole, foram entendidas, como potenciais instrumentos da ação do Estado.

De facto, o universo missionário constituiu o primeiro palco de atuação e intervenção do jovem clérigo formado em Cernache do Bonjardim. No entendi‑ mento de Hugo Gonçalves Dores, António Barroso ter‑se‑á confrontado e envolvido na intrincada teia das disputas coloniais que correspondiam, em África, ao sempre difícil equilíbrio político das potências europeias. Aí terá ganhado experiência e formado muita da sua visão do universo eclesial, uma vez convertido em mais um ator da política ultramarina portuguesa. Seguramente foi testemunha direta dos esforços portugueses no sentido de manter a influência nacional na África austral, invariavelmente apoiados na valorização dos argumentos da tradição histórica.

Testemunhou igualmente a profunda reconfiguração da estrutura do clero português, nomeadamente ao nível paroquial, aqui estudada por Sérgio Ribeiro Pinto. O longo de processo de transformação da Igreja e do clero, encetado com a implantação do liberalismo, foi objeto de sucessivas reformas nunca verdadeiramente concluídas. Daí resultou uma diversidade de situações bem espelhadas nos movimentos associativos promovidos pelo clero e nas difíceis relações entre a Santa Sé e o Estado. Esta conjuntura viu‑se prolongada na República, mantendo‑se graus idênticos de ambiguidade e conflitualidade, num quadro em que o regime político triunfante rejeitou qualquer dimensão confessional.

Depois do seu percurso missionário em África e na Índia, onde, por certo, acumulou experiências e alicerçou as suas convicções, fortalecidas na permanente relação com a metrópole portuguesa, António Barroso estava seguramente preparado para o novo múnus que lhe foi confiado. Chegado à diocese do Porto, pôde observar a Igreja que aí se vinha adaptando à continuada mudança. Sobre isto escreve Adélio Fernando Abreu, que traça o quadro desta diocese nas últimas décadas do século XIX, quando foi pastoreada por D. Américo Ferreira dos Santos Silva. D. António Barroso recebeu uma Igreja implantada num vasto território recentemente alargado na sequência da nova circunscrição diocesana de 1882. A nova reconfiguração espacial integrava diversificados agentes pastorais, designadamente um clero diocesano formado e disciplinado, e apresentava fecundas dinâmicas de apostolado laical, tão marcantes e pioneiras no Porto oitocentista.

Depois do desenho do universo em que viveu e se movimentou António Barroso, o estudo de António Júlio Limpo Trigueiros aproxima‑nos do homem inserido nas suas raízes locais e familiares, enquanto dava os primeiros passos da sua formação. Oriundo do ambiente rural de Entre Douro e Minho, cedo conviveu com um quadro socioeconómico onde, em paralelo com os cíclicos trabalhos agrícolas, se vivia intensas relações de familiaridade e vicinidade. As primeiras letras, aprendeu‑as precisamente neste contexto alargado, entretanto a uma escola próxima. Do coração do Minho rumou a Cernache do Bonjardim, para iniciar os seus estudos eclesiásticos. Na interação de todas estas influências forjou‑se uma personalidade sólida nas convicções e na vontade de agir. Estes traços mantiveram‑se ao longo de toda a sua vida marcada por uma frequente relação à sua terra natal, onde acabou por residir durante o período de exílio, e permitiram‑lhe resistir, nos últimos e muito atribulados anos, às vicissitudes decorrentes da implantação da República.

Como é referido, especial relevância assumiu na vida de António Barroso a sua ação missionária. Para ela se formou no Colégio das Missões Ultramarinas de Cernache do Bonjardim, antes de partir para o que viria a ser um amplo percurso em terras de missão, como regista Amadeu Gomes de Araújo, que traça detalhadamente os seus passos desde Angola/Congo até Meliapor, passando por Moçambique, intercalados com deslocações e permanências no continente. Muito teve o missionário que recorrer à sua formação no confronto com as realidades em que viveu. A sua sensibilidade e atenção permitiram‑lhe moldar‑se e adaptar‑se aos contextos de missão, sugerindo‑lhe também elementos que lhe possibilitaram intervir tanto na renovação da formação dos missionários como nas discussões em torno do Padroado português.

À face missionária cedo associou António Barroso o seu múnus episcopal, dimensão esta que se cumpriria plenamente na diocese portucalense. Coube a Carlos A. Moreira Azevedo estudar este decisivo e derradeiro período da vida do prelado, encerrando também as abordagens que animaram a realização do colóquio. O estudo privilegia as intensas relações com a Santa Sé, traduzidas num vasto corpo epistolográfico, em que ocupa lugar especial a correspondência com o núncio. Ficou bem patente quanto esta documentação espelha a amplitude dos temas e das questões em que se envolveu o prelado, desde os padres pensionistas às cultuais, passando pela questão da Bula da Cruzada e pela reconfiguração das dioceses e a escolha de novos bispos. Emerge uma personalidade forte e intensa que levou até aos limites da própria existência física o sentido de serviço e de intervenção no seu tempo e na sua Igreja. Mas emerge também um perfil de pastor animado por um fecundo discernimento e coerência.

Homem do seu tempo e no seu tempo, D. António Barroso transformou‑se, graças à sua personalidade e permanente intervenção, em ator e observador privilegiado do mundo em que viveu. Por isso mesmo, através dele acercamo‑nos do complexo Portugal que entre os finais de Oitocentos e as primeiras décadas do século XX tardava em assumir plenamente as circunstâncias e as potencialidades da contemporaneidade.

 

Alio Fernando Abreu

Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa, Portugal (UCPCEHR)

Luís Carlos Amaral

Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória – Faculdade de Letras da Universi dade do Porto (CITCEMUP); Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa, Portugal (UCPCEHR)