
Por Jorge Teixeira da Cunha
Teve larga difusão a notícia de que o governo turco transformou a igreja de Santa Sofia. Em Istambul, numa mesquita. Foi a segunda vez que tal aconteceu. Consta que no próprio dia de 1453 em que Maomé II conquistou a cidade de Constantinopla já se celebrou lá a oração islâmica da tarde. Assim se concluíam cerca de mil anos em que esse esplendoroso edifício foi o símbolo do triunfo do cristianismo. Posteriormente, o presidente Ataturk decidiu sensatamente, em 1935, que fosse um lugar museu aberto à visita de todos. Nessa condição, foi visitada por milhões de ocidentais que admiraram o esplendor sem igual das suas cúpulas e mosaicos cristãos. Agora chega a notícia de que as imagens douradas serão de novo cobertas para que se possa celebrar o culto corânico.
No meio de todo o bulício que se gerou em volta da decisão, salva-se a concisa expressão do Papa Francisco, no dia em que se conheceu o facto, dizendo estar “muito angustiado”. Pois que mais se há-de fazer que não seja recolher-se numa angústia contida? É que Santa Sofia é a expressão visível de uma ferida histórica que não se fecha.
De facto, Santa Sofia é lugar de muitos acontecimentos. Foi lá que se selou a separação entre os cristãos do Ocidente e os do Oriente. Foi no altar de Santa Sofia que o cardeal Humberto, embaixador do Papa, e o Patriarca Miguel, depuseram os documentos de mútua excomunhão. É uma ferida que continua a sangrar devido à divisão entre Católicos e Ortodoxos. É certo que tem sido grande o esforço de diálogo ecuménico. Mas a divisão continua dolorosamente patente.
Santa Sofia é também o sinal do afrontamento entre crentes cristãos e crentes muçulmanos. Em muitos outros lugares do mundo, nomeadamente da Península Ibérica, esse testemunho está vivo, em edifícios que foram de um credo e agora são de outro. O diálogo inter-religioso tem dado alguns frutos, mas a religião continua a ser um elo de discórdia e um factor de violência no nosso mundo.
O que aconteceu é uma assunto principalmente político. É aqui que a teologia pode dar o seu contributo para iluminar e desmascarar todos os interesses em jogo. Principalmente para dizer a todos os políticos despóticos deste mundo que invocar, em vão, o Santo Nome de Deus é um acto sem perdão. O nome de Deus foi usado no passado e é usado hoje para legitimar a violência e para obter vantagens por parte de quem prossegue objectivos políticos ilícitos. Isso aplica-se a políticos de todas as orientações e de todos os credos. Se olharmos bem, a decisão de converter Santa Sofia em mesquita tem objectivos de política interna turca bem confessados. Mas também vimos no Ocidente quem aproveita a dor do Papa Francisco para o acusar de pactuar com a perseguição de cristãos e de liderar a Igreja num sentido com o qual discordam. Uns e outros caem no juízo implacável do antigo mandamento do decálogo. O futuro do mundo mostra-se pesado de sombras se o religioso servir para justificar interesses confessados ou inconfessados seja de quem for.
O Salmo 2 diz que o Altíssimo se ri das maquinações dos poderosos do mundo. É uma palavra eterna que deve fazer-nos pensar a todos. Os lugares como Santa Sofia são importantes, mas são apenas lugares. O mais importante é que a fé em Deus seja recebida como um contributo para uma cultura de respeito pelo semelhante. Desse respeito ninguém sobre a terra está desobrigado.