
Por M. Correia Fernandes
Celebrou-se no sábado, 18 de julho, a memória litúrgica de São Bartolomeu dos Mártires, assim registada no Martirológio Romano:
“Comemoração do São Bartolomeu dos Mártires, bispo, que, nascido em Lisboa, na freguesia dos Mártires, ingressou na Ordem dos Pregadores e foi nomeado para a sede episcopal de Braga, onde pôs em prática as orientações do Concílio de Trento, no qual participou eficientemente. Insigne pela integridade da sua vida, empenhou-se com suma caridade pastoral em acudir às necessidades do seu rebanho e ilustrou com sólida doutrina os seus numerosos escritos. Finalmente, tendo renunciado ao ministério episcopal, retirou-se no Convento de Santa Cruz de Viana do Castelo, construído por sua iniciativa, onde prosseguiu a vida austera de simples religioso, dedicado à oração, caridade e estudo, e faleceu no dia 16 deste mês” (de julho, do ano de 1590).
O decreto de canonização foi promulgado pelo Papa Francisco no dia 6 de julho de 2020. D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1514-1590), foi arcebispo de Braga, arquidiocese que incluía na altura os territórios das dioceses de Braga, Viana do Castelo, de Bragança-Miranda e de Vila Real.
A sua figura desde cedo se evidenciou perante a Igreja e a Nação Portuguesa, dando origem a uma biografia, assinada por Frei Luís de Sousa, intitulada “Vida do Arcebispo”. A personalidade de Frei Luís de Sousa foi desenvolvido e dramatizado por Almeida Garrett, no conhecido drama clássico Frei Luís de Sousa (1843), onde analisa o drama de um homem que se vê confrontado com a hipótese de a mulher com quem casa e que é assaltada pela hipótese de o seu anterior marido voltar da Alcácer Quibir. O certo é que Manel se Sousa Coutinho (1555-1622) tomou hábito de dominicano em S. Domingos de Benfica, em 1623, com consentimento de sua esposa, que tomou hábito no convento do Sacramento.
Dentro do espírito dominicano, a partir da sua profunda formação histórica, escreve os Anais de D. João III. É assim também que escreve a sua Vida do Arcebispo, em que acompanha a vida e ação apostólica de Frei Bartolomeu dos Mártires. O Arcebispo é inspirado pela mística dominicana, pelas suas formas e pelo seu espírito.
Mais estranho nos pode parecer que a figura do arcebispo de Braga, homem e religioso do século XVI, contemporâneo, por exemplo de Santa Teresa ou de Camões, tivesse merecido a atenção de um autor não particularmente dedicado à vida de santos, como foi o mestre Aquilino Ribeiro (1885-1963), que justifica a sua atenção ao Arcebispo pelo pedido que lhe fizeram amigos seus de Braga “especialmente rotários” e o “enlevo que sempre senti por esse sacerdote”, revelado nas páginas da “palavra burilada e conceituosa que é a Vida do Arcebispo de Frei Luís de Sousa”, cuja impressão está anunciada em Viana do Castelo, facto do qual Aquilino duvida.
Assim nasceu a obra de Aquilino: Dom Frei Bertolameu.
O percurso romanceado da sua vida começa na chegada a Braga, ni dia de S. Francisco (que cai em 4 de outubro), em que “dos ouriços a arreganhar começavam a cair as primeiras castanhas longais, e as adegas rescendiam ao cheirinho capitoso do mosto”. Esta passagem nos mostra logo duas coisas: a beleza e originalidade descritiva do auto e a forma romanceada da sua descrição dos eventos, Que lê com o distanciamento de alguém que interpreta os dados com os olhos laicos perante acontecimentos em que a motivação do religioso e da atividade pastoral marca o âmago da questão.
Mas perdoemos este distanciamento pela proximidade do factor humano que Aquilino consegue transmitir com invulgar arte. Como, por exemplo, o relato da sua partida para Trento “na segunda feira de Lázaro, estava em flor o alecrim da cerca e uma pita das capoeiras havia tirado uma ninhada de doze pintainhos, bonitos como anjos”. É neste estilo de ligação entre a ação pessoal e a natureza que Aquilino mostra um arcebispo próximo da simplicidade popular e de uma espiritualidade da presença e dedicação.
A sua presença em Trento é apresentada com a simplicidade de um pastor que deslumbra pelo seu cajado, estranho para os outros prelados, que formulam esta questão:
“ – De que catacumba saiu este ostrogodo?
Sim, a que diocese barbaresca pertencia o homem do cajado?”.
O percurso de Frei Bartolomeu em Roma é apresentado por Aquilino com o contraste ente as ostentações curiais e o estilo de simplicidade do arcebispo, que pede para ficar alojado na sua cela de simples dominicano. Para o regresso a Portugal é-lhe disponibilizada uma mula papal de boa estirpe.
O Capítulo XII deste seu livro inicia-se com este parágrafo antológico: “Quando se olha para certos vultos de Quinhentos, quase fim do século – Frei Luís de Sousa, que deu à língua formas senhoris e expressões de extrema graça, Frei Bertolameu dos Mártires, excelso príncipe da Igreja, Diogo Bernardes, poeta de ritmos de oiro e cristal, comparáveis aos fuzis sonantes duma cortina veneziana – fica-se um pouco desapontado, sabendo que serviram mais complacentemente a Filipe, o usurpador”. Referência ao tempo de FilipeII e ao seu governo de Portugal.
Depois vem esta comparação: “Este Frei Bertolameu dos Mártires sai da pena de Frei Luís de Sousa como uma figura do Greco. Ambos, biógrafo e artista sabiam espreitar por igual para o interior dos corpos, por debaixo das pompas oficiais e roupagens terrenas e nos fretratos assomam almas.
Pois é este assomar de almas que Aquilino procura transmitir através do sua construção romanesca, em que a figura do arcebispo emerge na sua grandeza humana e espiritual. Ele que, afirma, “a par da sua humildade era um eclesiástico zeloso das prerrogativas do seu cargo”, comparando-o às couves galegas que “crescem direitas ao céu, sendo tanto maior a sua elevação quanto mais folhas se lhes apanham”.
A este Dom Frei Bertolameu acrescenta Aquilino três crónicas, que chama “As três desgraças Teologias”, sobre as filhas de Sancho II, o Povoador (Teresa, Sancha e Mafalda), cujas figuras analisa ao seu estilo a um tempo truculento e atento. Vale pois a +ena reler esta dimensão da obra de Aquilino Ribeiro, que sabia estar atento às raízes do país.