
Por M. Correia Fernandes
O que poderá reunir estes nomes tão mutuamente estranhos?
Há que fazer um esforço de compaginação. Os serviços culturais da Santa Sé lembraram a música de Ennio Morricone, salientando a expressividade da partitura concebida para o filme “A Missão”, de Roland Joffé (1986), que reconstrói o trabalho dos jesuítas na América do Sul, através do projeto de construção de comunidades indígenas (os índios guarani), a que foi dada a designação de “reduções”, que pretendiam ser modelos de sociedades autogeridas pelos indígenas, ao jeito da cristandade primitiva. Os indígenas, para os quais era proposta a fé cristã, tornavam-se cidadãos livres da escravidão. A busca de domínio dos colonos portugueses e espanhóis deu origem a conflitos de interesses e a lutas políticas entre os reinos de Portugal e Espanha, mesmo quanto à definição de fronteiras. Tais lutas acabaram por conduzir à destruição da “Missão” e ao assassinato dos responsáveis no decurso de uma procissão eucarística e a ser lançados nas cataratas do Iguaçu, conduzindo a uma cena antológica da queda dos índios e sacerdotes envolvidos pelo turbilhão das águas. Duas cenas finais marcantes: um indígena da comunidade recolhe o ostensório que o padre assassinado conduzia; uma criança indígena salva um violino nos escombros da missão destruída. É aí que a música composta, orquestrada e dirigida por Morricone (com a orquestra sinfónica de Londres) adquire toda a sua força expressiva. Por ela ganhou o óscar de melhor banda sonora original. Roland Joffé recebeu o óscar de melhor direção. Jeremy Irons recebeu o Globo de ouro de melhor ator de um filme dramático.
Esta foi uma experiência que, com a dinâmica da proclamação do Evangelho, constitui uma experiência de promoção social, uma proposta de sociedade baseada no trabalho, na cooperação e no governo partilhado. Experiência que se verificou em outras regiões do Brasil, como foi o caso do Pará, do Maranhão e Baía, como temos testemunho nos texos e cartas do Padre António Vieira.
Foi no contexto do falecimento de Ennio Morricone, aos 91 anos de idade, que o Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Conselho Pontifício da Cultura (que encontramos em Portugal no memorial dos 20 anos da igreja de Santa Maria do Marco de Canaveses, em 7 de junho de 2016) evidenciou o valor espiritual da sua música, que, afirma “expressava o inefável”, manifestando sentido de espiritualidade e religiosidade.
Ennio Morricone, que recebera a Medalha de Ouro do Pontificado do Papa Francisco em 2019, afirmara: “Chorei somente duas vezes, pelo filme ‘A Missão’ e ao encontrar o Papa”. Foi num encontro da igreja “de Gesú”, em Roma, numa visita que Francisco fez a esta sede dos jesuítas. Mantinha especial admiração pela missão e o carisma da Companhia de Jesus, que procurou traduzir na banda sonora de “A Missão”.
Morricone escreveu e dirigiu a interpretação de centenas de composições para filmes, muitos famosos, de diversos estilos, como o “western” (“Por um punhado de dólares”), “Era uma vez na América”, “Novo cinema Paraíso” ou “A Batalha de Argel”. Alguns dos seus quatro filhos seguiu também o modelo do pai, trabalhando para o mundo do cinema.
Foi esta figura da sétima arte que mereceu o reconhecimento da Santa Sé. Pelo qual aqui o recordamos.
Mais estranho poderá parecer o facto de um órgão oficial da Santa Sé promova uma referência à obra de José Saramago (1922-2010), lembrada a propósito dos 10 anos da sua morte, ocorrida em 18 de junho de 2010. A referência foi feita pelo “Osservatore Romano”, órgão oficial da Santa Sé, na edição de 23 de junho.
No texto da autoria do jornalista Sérgio Suchodolak se afirma: “Não obstante o pessimismo de que muitas das suas obras estão imbuídas, prestando-se a vários níveis de leitura, no décimo aniversário da sua morte preferimos recordá-lo como um autor que procurou destacar o fator humano que se esconde por detrás dos acontecimentos mais díspares”.
O autor do texto salienta especialmente o teor do romance “Ensaio sobre a cegueira” (1995), em que evidencia a crítica à sociedade global, a análise pessimista mas lúcida das dimensões negativas da natureza humana, sobretudo a indiferença, o egoísmo, o desprezo pelo semelhante. Imbuído, como diz, de “pessimismo antropológico”, reconhece que não somos bons, esperando no entanto o remédio da compaixão.
O “Ensaio sobre a cegueira” adquire por certo uma atualidade especial, dado que se inicia com uma epidemia contagiosa de “cegueira branca”: há epidemia, há quarentena, há hospício, há médicos e curadores, há desentendimento e conflitos, há debates sobre as soluções. Tudo num campo de pessimismo e desalento social, em que as ambições superam as soluções. Hoje temos no entanto propostas bem mais positivas.
No dizer do autor do artigo, a obra pode fazer refletir sobre os comportamentos humanos, sugerindo a busca de comportamentos que não conduzam ao absurdo: “Ainda se pode esperar que para as trevas da razão haja um remédio eficaz, ou seja, o da compaixão”.
É sabido que José Saramago, a partir de uma construção dramática complexa e contraditória, aborda numerosos temas relacionados com a tradição cristã, começando pelo “Memorial do Convento” (o rei que faz a promessa de construir um memorial para conseguir ter descendência), contrapondo a ação inquisitorial ao projeto científico do Padre Bartolomeu de Gusmão). Vem depois o “Evangelho segundo Jesus Cristo”, a sua visão positivista e racionalista dos factos evangélicos e da ação dos primeiros cristãos. Já vimos nestas páginas como Saramago tratava o fenómeno de Fátima em “O ano da morte de Ricardo Reis” (VP, 17 de outubro de 2018), com um misto de realidades factuais descritas e de interpretação negativista. Outra obra que provocou polémica, uma da suas últimas criações foi o romance “Caim”, reconstruindo a figura bíblica como tendo sido injustiçada pelas leituras tradicionais, que o dão como assassino e moralmente condenado. Interpreta os dados bíblicos, os males e os castigos, igualmente como dados sanguinários e criminosos. Curioso que a ação divina é atribuída a uma figura de deus sempre grafado em minúscula. Pode assim o texto constituir mais uma reflexão sobre a História, sobre as narrativas bíblicas que ele considerava marcadas por maldades e atrocidades, mesmo quando atribuídas à ação divina. Com efeito, talvez seja por parte do autor um esforço de denúncia de uma compreensão que desumaniza a história: a História são ações nascidas do princípio do mal traduzido nos gestos humanos.
Não creio tratar-se de uma reabilitação ideológica da figura controversa de José Saramago, por parte de alguém que analisa a sua escrita e o seu universo da condição humana. Mas parece propor uma releitura dos seus universos como esforços de leitura e de entendimento do Homem e da Sociedade, de um presente controverso, de um futuro incerto, e de uma ausência de horizontes para além do tempo.
E é aí que está o cerne da visão teológica e salvífica do mundo.