Por Manuel José de Almeida e Silva*
1.Há alguns dias fomos confrontados com a notícia, acompanhada das respectivas imagens, do derrube de várias estátuas de vultos históricos dos Estado Unidos por multidões, a pretexto de alegadamente terem praticado ou defendido a escravatura.
Estes actos de puro vandalismo foram praticados alguns dias depois de um cidadão americano de cor George Floyd, ter sido morto por um polícia em circunstâncias bárbaras e repugnantes. Isso pode explicar o móbil daquelas atuações num ambiente emocional de autêntico paroxismo, mas não o justificam.
Se bem me lembro, foi Joaquim Paço d’Arcos que na “Floresta de Cimento” elogiou a mesma nação americana ter erguido uma estátua a Robert Lee, o general que durante a guerra civil comandava as tropas sulistas que, como é sabido, defendiam a escravatura dos negros pelos brancos. Esse elogia não visava o acto de homenagem a esse vencido, mas ao gesto de tolerância dos vencedores.
2.Não é a primeira vez que temos notícia de atentados contra figuras religiosas ou vultos históricos, alguns situados em Portugal. Foi o caso da “Pietà” de Miguel Ângelo, na Basílica de S. Pedro, em Roma, do monumento lisboeta a Eça de Queiroz de Teixeira Lopes, do busto de António Nobre no Jardim da Cordoaria, do Porto, da estátua a Oliveira Salazar na terra da sua naturalidade, da estátua de Sadan e de outros chefes políticos durante a “Primavera Árabe”.
Nos primeiros destes casos os autores do vandalismo o não tiveram pretexto que o explicasse, tudo indicando que o tinham praticado a coberto da noite e sem parceiros. Já assim não aconteceu quanto aos outros casos, onde se verificou motivação política.
3.Uma estátua, como um busto, são esculturas, peças de significado histórico, obras de arte. Se nos encontramos perante uma obra de arte é imperativo que se respeite, como trabalho do seu autor. Ela reflecte a sua concepção, o seu esforço, o seu génio oi talento. Uma obra de arte inserida num espaço público passa a ser uma obra de interesse público, tanto mais que foi erigida com dinheiro público. Todos temos o dever de a respeitar e conservar. Ninguém tem o direito de a danificar ou destruir.
Podemos, por exemplo, não sentir qualquer simpatia pelo político republicano Afonso Costa pelo seu entranhado ódio ao catolicismo ea perseguição que moveu ao Bispo do Porto D. António Barroso, mas isso não justificaria qualquer dano que praticássemos na estátua a ele erigida no Campo 24 de Agosto, no Porto.
4.Aquele atentados praticados contra várias estátuas dos Estados Unidos inspiraram outros atentados desse género noutros países. Infelizmente também não faltou quem, macaqueando as asneiras dos autores daqueles, se lembrasse de borrar a estátua erguida em Lisboa ao P. António Vieira, com pinceladas e a palavra “Descolonizar” a atravessar o plinto. Houve quem apoiasse esse gesto como manifestação contra a escravatura.
A pedrada não atingiu o alvo. Para além de se tratar de um gesto insensato, revela uma crassa ignorância. É sabido que o P. António Vieira mereceu que Fernando Pessoa lhe chamasse “Imperador da Língua Portuguesa” e foi um defensor intransigente dos Índios o Brasil e adversário acérrimo da escravatura (v. texto transcritos em “Antologia e Aforismos”, ordenados pro M. Correia Fernandes, e o artigo deste autor na Voz Portucalense de 17 de Junho último).
5.Mas não é verdade que no passado houve escravatura? Certamente e isso ocorreu em praticamente todos os países. Erro de muita gente é julgar o passado, a nossa História, com as ideias, os quadros mentais do século XXI.
A escravatura foi uma prática comum a todos os estados europeus, americanos, asiáticos e africanos. Os nossos navegadores e descobridores já a encontraram nas terras onde foram aportando, salvo nas ilhas desertas, praticada pelo sobas e caciques locais. Era uma prática corrente, uma atividade comercial, aceite pela maior parte das pessoas e das nações, constituindo os escravos uma presa de guerra. Por isso os Romanos diziam “Vae vicltis” (Ai dos vencidos).
6.É sabido que ainda hoje existem, até entre nós, casos de escravatura, praticados por alguns lavradores e empresas rurais, que “contratam” imigrantes com promessas atraentes, para os submeterem a trabalhos forçados, encurralando-os em situação indigna, mal alimentados e sem remuneração. Não seria o primeiro caso a chegar à barra dos tribunais.
Estranhamente, nunca nos foi dado conhecer qualquer manifestação pública contra essa modalidade de moderna escravatura…
*Juiz Conselheiro jubilado do STJ. O autor não segue o último acordo ortográfico.