Vale a pena ler?

E. C.  “Antes de escrever, aprenda a pensar.”

Boileau, poeta francês, séc. XVII – XVIII

Por Ernesto Campos

Nunca se sabe se o título da primeira página de um jornal diário corresponde em importância, por excesso ou por defeito, ao que está no interior.

D. José Ornelas, presidente da Comissão Episcopal Portuguesa (CEP), concedeu uma entrevista a um jornal. Com as parangonas que o chefe de redação pôs em relevo, correu-se o risco de fixar os leitores num aspeto menor em prejuízo de outros aspetos que vale a pena ler. Na entrevista alude-se, por exemplo, a um reforço da presença do Estado na sociedade e na economia, e o entrevistado esclarece: “não quisemos voltar à ideia de uma economia planificada e estatizada”, não se trata de “um programa de nacionalizações mas de um alerta no sentido de dizer que o Estado tem de criar condições para que o país seja capaz de se desenvolver com harmonia”, devendo o Estado aproveitar “a criatividade e a iniciativa da sociedade.”

É a velha querela do papel do Estado perante a autonomia da iniciativa privada. E não é só no contexto do neoliberalismo económico de liberdade empresarial. Questões como a educação, a saúde, o bem-estar equitativo usufruído por todos, a economia social e as questões éticas da vida e da morte, etc. são coisas em que o Estado pode ou deve sobrepor-se à sociedade civil? A filosofia social define, a este propósito, o princípio da subsidiariedade que a doutrina social da Igreja acolhe. Tal princípio supõe, em modo negativo, que o Estado se abstenha de tudo o que limite o espaço vital das células menores da sociedade; em sentido positivo, traduz-se  na ajuda económica, institucional, legislativa oferecida às entidades sociais menores; criar condições, pois, é o  que do Estado se espera.

Outro aspeto focado na entrevista é a iniciativa parlamentar sobre a eutanásia. Também aqui se discute a legitimidade do papel do Estado em matéria que diz respeito ao primado da pessoa. D. José aponta: “ o que devíamos discutir é qual o modelo de sociedade que queremos e como, nessa sociedade, se garantem valores de humanização para que as pessoas consigam terminar a sua vida da forma pacífica, sentindo-a completar-se e não simplesmente abandonadas.”. Justamente sobre a pessoa humana, a sua privacidade e a intervenção estatal, para D. José, Portugal esteve bem nas medidas de contenção adotadas, mas alerta que ir além da estrita necessidade de controlar os contágios, é um caminho direto para os totalitarismos.

Quanto à pós pandemia, o entrevistado diz,  sobre  o rejuvenescimento do projeto europeu: “lembro-me de ouvir os insuspeitáveis do Banco Mundial a fazerem penitência pela forma como geriram a última crise, assumindo que os custos sociais têm de ser calculados e, se necessário, transformados em números para que se possa programar uma boa economia. E é importante que nesta viragem se tenha a coragem de voltar à raiz do projeto europeu porque ou há um rejuvenescimento ou este projeto caminhará para o seu fim.”.

Valerá a pena reler estes passos da entrevista ao presidente da CEP; apontam o rumo: a natureza ética das opções políticas, o totalitarismo que ameaça a pessoa humana, o papel do Estado ante a vitalidade da sociedade civil, a boa economia e o rejuvenescimento do projeto europeu. São estas,  e não outras, as linhas com que nos cosemos no tecido que é a vida da comunidade nacional.