Um teólogo (des)embrulhado na (p)an(d)emia (3)

Foto: João Lopes Cardoso

Por Alexandre Freire Duarte

Anteriormente disse que receava, e até desejava, que as minhas preocupações subjacentes a estas palavas derivassem de perceções erróneas da minha parte. Desta feita não o direi. Olhando, com fome, para uma folha de alface e uma fatia de tomate, deixar-me-ei levar pela gula e tomarei as duas, dado que, no corrupio pós-confinamento, queimei 5000 calorias de uma só vez quando não desliguei o forno.

Esperamos e desesperamos, direitos ou torcidos, por tal desconfinamento, mas estou certo que o mesmo só se realizará se o trocarmos, com aquela humildade que é firmeza, por um outro: o sermos confinados em Cristo Jesus (cf. Col. 3,3), para, desse modo e em tudo o que fizermos com vigorosa liberdade sem tormento, colocarmos o “mundo ao contrário” (cf. At. 17,6). E colocá-lo, persistindo na nossa missão co(m)-criadora (cf. Gn. 1,19s) de, como tem feito modelarmente o Bispo da nossa Diocese, darmos os nomes certos à realidade que nos envolve. Ela que, embora esteja cheia de virtualidades, também está, em tantas coordenadas e por mais que nos digam “está tudo bem, muito bem” (cf. Jr. 6,14), minada até aos ossos.

As feridas já existem; o necessário, agora, é colocar nelas o sal que salga e sapidifica (cf. Mt. 5,13), para que, ampliando-se a distorção que se está a imputar ao existente, reconheçamos que este não se cumprirá se nós não nos cumprirmos, nomeadamente recalibrando, na oficina da vida e do amor que é a Bíblia, o nosso nomear. Não chamemos “fardos” às “consequências do amor”; “felicidade” à “alienação”; “progresso” à “regressão”; “sabedoria” à “vacuidade”; antes, como diz Walt Whitman no seu poema “Canção a mim mesmo”, atestemos que tudo é «um lenço do Senhor, / Uma dádiva perfumada e recordação, deliberadamente deixada cair, / Trazendo o nome de Seu dono algures nos cantos».

Sermos cristão não é “fazermos coisas”, nem “sermos virtuoso”. Isso virá por acréscimo. Sermos cristão é, mesmo quando o medo nos morde no meio deste universo inseguro e profanável pelo desamor, apoiar-nos apenas em Deus-Amor. É levar, pela alegria do irrefreável amor crente (cf. Gal. 5,9), o vírus salutar da graça a quem, quiçá teimando em cortar troncos com folhas, ainda não foi por ele infetado. Permitamos, assim, que os famintos nos alimentem; os sedentos nos abrevem; os sem-abrigo nos abriguem. Mais do que apenas os acolhermos, demos crédito a eles, deixando que nos acolham nas suas vidas (cf. Lc. 19,5), e, dessa forma, as suas almas a chorar sejam, se as consolarmos com as nossas até que ambas sejam enxugadas (cf. Ap. 21,6), parte integrante do nosso Éden.

Se assim não for, não viveremos, mesmo nas horas demasiado tardias, da Promessa sempre maior. Será resignar-nos (senão mesmo entregar-nos) não ao veneno infinitesimal que nos tem assombrado, mas a todas as revoltas, punçantes e dispersas, da noite. Aquelas a que, por vezes e na palha da vida, não queremos identificar como tal, seja por contaminação, acomodação ou falsa prudência (cf. Is. 5,18-23). Consequentemente, nunca seremos, neste desconfinamento global, edificadores de uma nova normalidade normal, antes resignar-nos-emos, sem vergonha que nos compunja, às antigas anormalidades encapotadas sob palavras porventura apoetadas, mas tornadas apatetadas, pois sem qualquer relação com o real. Em consequência, e ao contrário do dito por Dietrich Bonhoeffer no seu poema “Poderes benfazejos”, não ouviremos, nem viveremos, «o som cheio do mundo, / que se expande invisivelmente em nosso redor, / num canto supremo de louvor de todos os Teus filhos».