
A orientação dada pela generalidade das Conferências Episcopais, no contexto da atual pandemia, no sentido de a comunhão eucarística ser dada na mão e não na boca, suscitou algumas reações de contrariedade e, até, de protesto.
Poderiam os reclamantes argumentar que é possível ministrar a comunhão na boca sem haver contacto direto dos dedos do ministro com a língua ou as secreções dos comungantes que prefiram essa modalidade; poderiam acrescentar que, ao dar a comunhão na mão, e porque os fiéis não estão estáticos, é quase impossível evitar completamente o contacto dos dedos/mão do ministro com os do fiel que recebe o sacramento. No contexto dos esforços comuns para evitar ocasiões de contágio, esses argumentos até poderiam fazer sentido. Mas não: o grande motivo do protesto está na admissão do princípio de que os fiéis leigos possam tocar, com as suas mãos não ungidas, no Corpo de Jesus sacramentado. Esse seria um direito exclusivo do sacerdócio ministerial.
A este argumento, de validade questionável, acrescentam outros: como podem as mãos de pecadores, ainda por cima nem sempre limpas, atrever-se a tocar no Santo dos Santos? E como acautelar o desprendimento de fragmentos que inadvertidamente se deixam cair por terra e, mais ainda, como impedir a subtração da sagrada partícula, recebida nas mãos, para usos indevidos e, até, profanação sacrílega? Como se os sacerdotes fossem sempre imaculados e como se a língua dos leigos, na qual se deposita o Santíssimo, fosse mais pura e lavada do que as suas mãos… Como se no passado, quando a comunhão era recebida apenas na língua, não houvesse subtração das espécies consagradas para missas negras… E como se, sem cair no escrúpulo de uma conceção microscópica da presença real – onde a espécie já não o é – não fosse possível educar os fiéis para o cuidado que devem ter com o tesouro que recebem nas mãos, mais precioso que o ouro…
Diga-se, como primeira e bastante resposta, que sempre foi doutrina comum entre os teólogos que a Igreja, não tendo poder para alterar a «substância do Sacramento», tem amplos poderes para modificar o seu «uso». É assim que São Tomás de Aquino, por exemplo, justifica e recomenda a prática, então generalizada, da comunhão apenas sob a espécie do pão… E acrescente-se que as orientações agora publicadas são meramente circunstanciais não traduzindo a intenção de, no particular da comunhão na boca ou na mão, alterar o uso vigente: são normas de exceção para tempos excecionais.
Far-nos-ia bem conhecer melhor a história da liturgia. Falando globalmente, quem é que, no primeiro milénio, recebia a comunhão diretamente na boca? A resposta é simples: os doentes que não podiam fazer uso das suas mãos e as crianças batizadas (parvuli) às quais o ministro do Batismo ministrava a Comunhão, como ainda se documenta no Pontifical Romano do Século XII: molhava um dedo no cálice e metia-o na boca da criancinha que, assim, comungava… Os outros – os cada vez menos que participavam na Eucaristia como oferentes e comungantes – recebiam na mão o Sacramento – mãos eventualmente revestidas por um véu, num gesto de reverente homenagem – e levavam-no por si à boca, com respeito humilde e nobre dignidade.
A prática terá começado a mudar pelo século IX-X. O texto mais antigo, atribuído a um suposto concílio regional de Rouen, Normandia (878) mas, provavelmente, redigido por Réginon, abade de Prüm, por volta de 906 ameaçava com a excomunhão quem se atrevesse a depor o Corpo do Senhor na mão de qualquer leigo ou mulher… A nova prática levou uns dois séculos a generalizar-se. Os historiadores da Liturgia relacionam-na com a adoção do pão ázimo no Ocidente latino e com a importância dada à unção consecratória das mãos dos presbíteros. Ao mesmo tempo procurava evitar ou dificultar abusos e profanações e, como motivação positiva, exprimir respeito e reverência. Não por acaso, a receção da comunhão na boca andará associada à posição de joelhos. Mas a mesma recomendação de respeito e reverência se encontra nas catequeses do século IV que preconizam a receção nas mãos do Sacramento do Corpo e Sangue do Senhor…