Covid-19: As máscaras e os olhos

Foto: João Lopes Cardoso

O universo compulsivo da máscara constitui um fenómeno de importação que se seguiu ao confinamento.

Discute-se sobre a utilidade do uso da máscara. Há-as de todas as formas e feitios: as normais, as branqueadas, as descartáveis, as renováveis, as caseiras feitas em casa, as caseiras vindas do supermercado, as azuis, as coloridas, as negras, as pintalgadas, as imaginativas e as toscas.

A sua utilidade é obviamente duvidosa: elas acolhem toda a espécie de seres vivos visíveis e invisíveis que lhes caem dentro. A maioria são reutilizadas. Imaginamos que são capazes que acolher oque é bom e rejeitar o que é mau.

O seu uso tem vários efeitos potenciais. Vários negativos, outro virtuoso. Um é desligar-nos uns dos outros. Tornar-nos estranhos e misteriosos para com quem vemos e por quem somos vistos. Outro efeito é o de impedir que sejamos capazes do comunicar de forma inteligível: quando falamos poderemos saber o que dizemos mas não sabemos se a nossa mensagem foi recebida de forma capaz. São por isso um instrumento de não comunicação.

Dão-nos uma sensação de segurança. Será que dão? A sensação corresponde à realidade, ou é apenas uma sensação imposta por decreto?

Se há espaços em que possam ser justificadas (casas comerciais, supermercados, espaços de presença numerosa de pessoas), outros são absurdos: nos jogos desportivos e sobretudo nos espaços de alimentação e bebidas, restaurantes, pastelarias, cafés e similares. A obrigatoriedade de entrar de máscara nos cafés, bares e restaurantes é de um completo absurdo, e constitui uma desvirtuação do seu uso. Ninguém pode comer de máscara, nem ao menos tomar um café. Vamos ser equilibrados e razoáveis: há espaços em que a máscara é insensata. Deixemos de obrigatoriedades forçadas. Que só servem para aplicar multas, o que é uma atividade muito buscada e produtiva entre nós.

Finalmente, vamos ao universo positivo potenciado pelas máscaras. O seu uso, que nos esconde a identidade global das pessoas, permite-nos ao menos uma dimensão da sua identidade: o olhar. Tantas pessoas, tantos rostos amigos em cujos olhos nunca nos fixamos, agora aparecem-nos com uma inesperada força do olhar. Descobrimos neles um novo rosto e uma nova dimensão de proximidade. Viva, pois, a máscara para descobrirmos o olhar uns dos outros. E descobrimos mesmo presenças que talvez tivéssemos ignorado.

Com máscara ou sem ela, vale a pena revistar o Padre António Vieira neste espantoso retrato, sem máscara:

Notável criatura são os olhos! Admirável instrumento da natureza; prodigioso artifício da Providência! Eles são a primeira origem da culpa, eles a primeira fonte da graça… Todos os sentidos do homem têm um só ofício; só os olhos têm dois ofícios: ver e chorar… O ver é a ação mais alegre; o chorar a mais triste… O chorar é o estilhaço da dor, o sangue da alma, a tinta do coração, o fel da vida, o líquido do sentimento… Ajuntou a natureza a vista e as lágrimas, porque as lágrimas são a consequência da vista; ajuntou a Providência o chorar com o ver, porque o ver é a causa do chorar. Sabeis porque choram os olhos? Porque vêem…  Só os olhos racionais choram… O chorar é o lastimoso fim do ver; o ver é o triste princípio do chorar”.

(P. António Vieira, Sermão da Lágrimas de S. Pedro, na catedral de Lisboa, 1669)

Saibamos então descobrir a força atrativa do olhar. Como diz Gedeão:

Os meus olhos são uns olhos. / E é com estes olhos uns / Que eu vejo no mundo escolhos /Onde outros com outros olhos / Não vêem abrolhos nenhuns./ Quem diz escolhos diz flores./
De tudo o mesmo se diz. / Onde uns vêem luto e dores,/ uns outros descobrem cores /
do mais formoso matiz.

Com que olhos vemos? O dos medos ou os das esperanças?

CF