Do Dia de Camões à estátua do Padre António Vieira

Por M. Correia Fernandes

1.Cultural e civilizacionalmente, dois acontecimentos marcaram o 10 de junho: um de forma positiva e exaltante; outro de forma deprimente e anticivilizacional. Um pela beleza da palavra, outro pela fealdade do acto. O primeiro foi o discurso de José Tolentino de Mendonça, nas comemorações oficias do Dia de Camões e das Comunidades portuguesas; o segundo foi o gesto bárbaro de vandalizar a estátua do Padre António Vieira, na cidade de Lisboa.

Especialmente significativas os dois acontecimentos por se situarem em torno de duas das maiores figuras da nossa história e da nossa cultura: Luís de Camões e o seu poema, síntese e inspiração de todos os poemas; outro pela grandeza e lucidez da sua palavra, inspiradora de tantas outras, e da sua missão interventiva e criadora de civilização.

Pena foi que a palavra de Tolentino apenas tivesse sido escutada por seis pessoas, distintas e representativas, mas testemunhas de um sofrimento coletivo, e nem a potencialidade ilimitada das tecnologias envolventes as furtou a essa limitação de distanciamento, transformado em distanciamento das pessoas e da nacionalidade.

2.Mas a palavra sábia é como a palavra de Deus: não está acorrentada. Se a percorremos nela encontramos a seiva da portugalidade e o apelo da confiança. Da lição de Tolentino de Mendonça há muitas ideias que importaria reter para não serem esquecidas:

a)a centralidade e o alcance do poema camoniano, em que “a poesia é um guia náutico perpétuo, uma cosmografia da alma, que nos conduz a nós próprios, a representações que nos definem como indivíduos e como nação, àquela consciência última de nós mesmos”. Por isso salienta que Camões desconfinou Portugal, porque, afirma, “desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito”, “um exercício deliberado e comprometido de cidadania”. Regressa à palavra de Jorge de Sena: mais que um poema épico, Camões escreveu “um imenso tratado de moral”, ou de “comprometida cidadania”.

b)a reflexão sobre as raízes. Vai buscar uma passagem de mais viva expressividade do Canto VI, a narração da tempestade, para realçar o que diz o poeta das árvores arrancadas e de raízes voltadas para o céu: “A tempestade descrita por Camões recorda-nos, assim, a vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer conta. As raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo. Não há super-países, como não há super-homens. Todos somos chamados a perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e a tratar com sabedoria das nossas feridas”.

c) o sentido do amor ao país. Recorda uma palavra de Simone Weil (1909-1943), lembrando que se pode amar pela força ou pela fragilidade, apela ao sentido da compaixão, como exercício efetivo da fraternidade: “Compaixão e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de que nos orgulhamos, não apenas em relação á história passada de Portugal, mas também àquela hodierna, que no nosso presente se escreve. E é neste chão que precisamos, como comunidade nacional, de fincar ainda novas raízes”. “A raiz da civilização é a comunidade”.

d) Reabilitar o pacto comunitário e fortalecer o pacto intergeracional. Apela a que se olhe seriamente para a valorização dos idosos, mediadores da vida para as novas gerações, e uma atenção igual às gerações mais novas na busca da sua autonomia pessoal, à construção de raízes familiares que os prologuem.

e) A necessidade e urgência de um pacto ambiental, uma ecologia do mundo e uma ecologia da pessoa, uma “ecologia integral”, nas palavras do papa Francisco. Vem neste sentido o apelo ao sentido de uma construção coletiva: “Camões apresenta o própria país como viagem: Portugal é uma viagem que fazemos juntos”, “que liga a multiplicidade das raízes à composição ampla e esperançosa do futuro”.

Os media não deram a esta mensagem a centralidade que ela merecia e de que todos necessitamos. Um discurso para seis pessoas não é mediático. Mas é apenas essencial.

A estátua de Vieira

3. Vem depois a vandalização da estátua do Padre António Vieira, em Lisboa, com a inscrição da palavra “Descoloniza”, em contexto de luta anti-racista. O que se verificou foi um acto de barbárie, fundada na ignorância e no ódio, uma atitude claramente anticivilizacional. A estátua pode não ser especialmente rica de sentido, mas a pessoa, a ação e o universo que ela representa edificam uma das maiores personalidades e um dos maiores valores do universo português e universal. O que fez o Padre António Vieira (1608-1697) foi o contrário da colonização, foi a valorização do universo de um humanismo de raiz cristã, sempre contrário ao exercício despótico do poder ou dos interesses coloniais ou esclavagistas. Diz-se que Vieira defendeu os índios autóctones mas tolerou a escravatura dos negros. Tal tese é um lugar comum que carece de fundamento e de integração histórica.

Recomendo a quem assim pense que leia ao menos duas coisas: um sermão pregado na Baía em data incerta, mas possivelmente após 1633, um dos primeiros que fez depois da sua ordenação como sacerdote, e outro da mesma altura “pregado à irmandade dos pretos de um engenho”.

No primeiro tem esta passagem:

“Os israelitas atravessaram o Mar Vermelho e passaram da África à Ásia, fugindo do cativeiro: estes [os escravos] atravessaram o mar Oceano na sua maior largura e passam da mesma África à América para viver e morrer cativos. Os outros nascem para viver, estes para servir; nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem as mulheres, se fazem os comércios; naquela, o que geram os pais e criam a seus peitos as mães, é o que se vende e o que se compra! Oh! Trato desumano em que a mercancia é o homem! Oh mercancia diabólica em que os interesses se tiram das almas alheias e os riscos são das próprias!… Já, se depois de chegados olharmos para estes miseráveis e para os que se chamam seus senhores… os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando-se, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em oiro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores de pé, apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados, com as mãos atadas atrás, como imagens vilíssimas da servidão e espetáculos da extrema miséria… Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu?”

No segundo, escreve:

“Não pudera nem melhor nem mais altamente descrever que cousa é ser escravo em um engenho do Brasil. Não há trabalho nem género de vida no mundo mais parecido à cruz e à paixão de Cristo que o vosso em um destes engenhos… A paixão de Cristo foi de noite sem dormir e parte de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias; Cristo despido e vós despidos; Cristo sem comer e vós famintos; Cristo em tudo maltratado e vós maltratados em tudo… de tudo se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência também terá merecimento de martírio”. Também impressionante de rigor é a descrição que faz do trabalho dos índios nas minas, no sermão da primeira oitava da Páscoa em Belém do Pará.

Estes textos poder ser lidos na edição “Antologia e aforismos”, publicados pela Telos em 1997, e que foi apoiada pelo Ministério da Educação ou nas Obras Completas recentemente publicadas.

Permitam-me recordar, para a compreensão do P. António Vieira, A oratória barroca de Vieira, por Margarida Vieira Mendes e O Padre António Vieira e o Mundo de Língua Portuguesa, publicado pelo Universidade Católica, com um texto introdutório de Aníbal Pinto de Castro, “Perfil de Vieira, um barroco da luso-brasilidade”.

PS: Foi na sequência da celebração do 10 de junho que foi divulgada a atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva a D. José Tolentino de Mendonça, Prémio instituído em 2013 pelo Centro Nacional de Cultura em cooperação com a “Europa Nostra”, organização europeia para defesa do património. D José Tolentino foi com siderado como “Uma das vozes mais originais da literatura contemporânea portuguesa, salientando a “contribuição excecional de Tolentino Mendonça para a divulgação da cultura e dos valores europeus”. Felicitamos D. José Tolentino por esta oportuna nomeação. O Prémio será entregue em cerimónia prevista para o outono, e ter lugar na terá lugar Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.