Por Jorge Teixeira da Cunha
É difícil compreender o nosso tempo no que toca à interpretação dos movimentos de melhoramento e de moralização. Há algo interessante nas moções que percorrem o mundo contra o racismo, contra a escravatura, contra o colonialismo. Mas esses movimentos, muito embora visem valores autênticos, são caóticos e irracionais. Eles brotam de uma zona profunda da nossa alma de onde provêm os gritos de horror e as reações escandalizados perante o abjecto e o injusto. Quando as acções de protesto permanecem sob tal impulso irracional têm uma sequência imprevisível. É o que se tem visto com o derrube de monumentos, com a impugnação das instituições de segurança e o delírio de moralização, mesmo de moralização da história. O que falta a estes movimentos irracionais?
Cremos que lhes falta ir além do sentimento escandalizado, pois a acção humana também é feita da vontade recta e da iluminação racional. Em sentido teológico, falta um processo de reconciliação, pois apenas por aí se pode moralizar o mundo. É devido à falta desta sequência que os movimentos cívicos que percorrem o mundo em busca da superação do racismo, do colonialismo e da escravatura são ineficazes.
Aquilo que a teologia chama “reconciliação” é feito da aceitação prévia de que o mundo moralizado existe por uma dádiva divina e não pela força ilusória de um movimento, mesmo maioritário. De facto, uma cultura da paz e da reconciliação só é eficaz por um processo de purificação das relações humanas, no pressuposto de que a bondade precede a existência histórica dos indivíduos e das instituições. Isto é outro nome da graça divina, do perdão e da reconciliação.
É esta bondade precedente que dá aos indivíduos a sua instalação na subjectividade agradecida, perdoada e capaz de perdoar. Sem esta capacitação, que é verdadeiramente o modo de um indivíduo cair em si e encontrar a sua verdadeira identidade agradecida, toda a compaixão manifestada com o sofrimento alheio corre o risco de ser um recalcamento do seu próprio sofrimento. O poder de agir dos indivíduos provém da aceitação de “não poder” que é outro nome do perdão.
Será nesta base que se pode pensar a superação do racismo e que se pode purificar a história. De contrário, a humanidade não poderia viver com o passivo das práticas ignóbeis como foram a escravatura, o colonialismo e o racismo. Quando não existe este olhar para o passado com os olhos da graça divina, que nos deu o perdão antes mesmo da nossa queda, resta o escândalo destruidor e intolerante que nunca é caminho de melhoramento do mundo.
Será este pressuposto que nos leva a lidar com a memória humana do mal. Para que esta memória não nos leve ao desespero, é necessário mantê-la continuamente, mediante a contínua narração do passado, como aquilo que não pode voltar a repetir-se, seja a escravatura, seja o totalitarismo, seja o colonialismo. Por este caminho, a memória da paixão dos nossos antepassados que foram tratados injustamente é mobilizadora para nós. Por outro lado, esta memória mobiliza-nos a escrever sempre de nosso a história para que o injusto nunca mais triunfe sobre o justo, perpetuando-se numa história ideológica e em memoriais que não glorificam a conversão, mas o triunfo do mal. Apenas a conversão e a reconciliação são caminhos eficazes para superação do mal. É isso que a Igreja proclama e que tem uma importância civilizacional insubstituível.