
Por António José da Silva
Nos últimos dias, foram muitas as notícias a dar conta de atentados mais ou menos chocantes cometidos contra estátuas que evocavam personalidades históricas ligadas, justa ou injustamente à escravatura. Tudo na sequência da morte ignóbil de um cidadão afro-americano, de nome George Floyd, às mãos de um polícia norte-americano de cor branca.
A difusão daquelas imagens que testemunharam, durante oito minutos, a agonia de um homem sufocado pelo joelho de um polícia, enquanto em vão por socorro. dizem muito acerca do tempo em que vivemos. Diz muito do longo caminho que falta percorrer para se poder falar de um verdadeiro progresso civilizacional da Humanidade. E também diz muto acerca deste tempo dominado pela força incontrolável das chamadas redes sociais. Força Incontrolável, porque essas redes misturam no mesmo saco denúncias oportunas e plenamente justificadas com acusações tantas vezes falaciosas, mas sempre susceptíveis de confundir os seus consumidores, arrastando-os para reacções simplesmente emotivas e primárias, como aconteceu em alguns dos casos, entre os quais avulta o das acusações ao nosso padre António Vieira.
Desde sempre que se aceitou a ideia de que seria importante fazer memória dos grandes vultos da história de cada povo, fosse no domínio das artes, das letras e da ciência, fosse na área dos feitos militares. Essa memória sempre foi tida como condição necessária à formação e preservação da consciência nacional de qualquer povo, uma memória que se foi expressando sobretudo em obras de arte com as quais se ornamentavam as suas praças e ruas. E assim foi durante muito tempo, sem que se discutisse apaixonadamente a justiça total de algumas dessas homenagens. Assim, com a concordância mais ou menos generalizada da maioria dos cidadãos, e apesar de com algumas discordâncias pontuais, foram-se erguendo estátuas evocativas de figuras consideradas importantes para uma comunidade, sem que isso levantasse problemas de maior. Isto pelo menos até serem difundidas as imagens da morte de Georges Floyd.
Aí, e de um momento para o outro, tudo parece ter mudado. As viagens marítimas passaram a ser vistas como invasões condenáveis e a chamada colonização dos povos descobertos como violação dos direitos humanos. O orgulho por essas descobertas deu aparentemente lugar a um complexo de culpa que parece já não ter remédio. Os heróis de ontem são agora criminosos que, não sendo possível levar a qualquer tribunal internacional, não terão pelo menos direito à sua glorificação em obras de arte que sirvam para embelezar praças e ruas das nossas cidades. É caso para temer que, neste novo contexto histórico e ideológico, talvez esteja próximo o tempo de um mundo sem heróis…