Um teólogo (des)embrulhado na (p)an(d)emia (2)

Por Alexandre Freire Duarte

Volto a ter que admitir que pode ter sido por um mera distorção que surgiram as inquietações que estão por detrás destas palavras. Se calhar deveria crer nisso, todavia é verdade que diversas vezes me interroguei, durante este confinamento que atravessamos e apesar de ser comum dizer-se que ninguém é ateu no momento de um naufrágio, acerca de quantas mais pessoas, além das cinco franciscanas refugiadas que viajavam no navio Deutschland, oraram a Deus quando esse barco se afundava (cf. Mt. 8,24). Deveras, só sabemos que elas, porquanto fortalecidas com a vacina da firmeza do amor, o fizeram, tal como nos garantiu, se necessário fosse e numa metonímia, Gerard Manley Hopkins no poema épico “O naufrágio do Deutschland: «Irmã, uma irmã chamando / Um mestre – seu mestre e meu!» (cf. Jr. 32,17).

Um Mestre, Jesus, que Se converteu no nosso Barqueiro para o Pai, tendo como auxiliar a dama da piedade e da afeição, Maria. Aquela que abraça as margens justapostas da vida e daquela morte que, para quem a vê nos outros, é sempre uma saudade amorosa da vida. Mas isto apenas se, agora que nos calhou viver esta (p)an(d)emia, formos capazes de descobrir, no meio desta, horizontes de alento (cf. Job 36,15s) através de rostos e de mãos de amor que, no nosso lamento pela Cristandade que já não volta, criamos (e será que queríamos?) perdidos da humanidade.

Para isso, há que, como disse um Papa Francisco que não poucos desejam ver partir mais rapidamente do que o vírus vindo da China, deixar cair as «falsas e supérfluas seguranças» e voltar a rejubilar com o fundamental. Quer dizer: não só com os eventuais avanços científicos (que por si só nunca saciarão o nosso coração) de peritos em competição com outros peritos. Antes, sobretudo e como escreveu George Herbert no seu poema “Jordão”, com a simplicidade dos amadores «pastores cantores, que são gente honrada; / quem quiser brinque com enigmas / (…) mas aqueles puramente dizem “meu Deus, meu Rei”» (cf. Lc. 2,20; Jr. 37,20).

É urgente, portanto e mesmo que na obscuridade de tantas ausências, estarmos na nossa verdade quando tantos benfeitores anónimos, quais a inominada escrava de Naamã (cf. 2Rs. 5,2s), se cruzarem connosco. Urge, pois e quiçá arrependidos de os termos menosprezado (e até maltratado), termos olhos para tantos que nos ajudam a viver bem a caminho do vivermos eternamente: a condutora de transportes públicos, o parteiro, o enfermeiro, a coveira, o padre, o padeiro, o professor, o empregado de supermercados, a varredora de ruas, etc. Todos esses para quem, com a nossa suposta superioridade, talvez nos evadimos de cruzar os nossos olhos com os seus, nem lhes dissemos, de uma ou outra forma, que podiam voltar os seus para os nossos, até para que, desse modo, lhes testemunhássemos o nosso reconhecimento pela sua infinita dignidade (cf. Lc. 22,61; At. 3,4).

Nem só dor e morte nos trouxe o Covid-19, mas igualmente inspirações para vivermos no amor maior e mais alegre de que formos capazes. Não o da diversão dos frutos só alcançáveis por regalias, mas o da alegria que, tocando o centro do ser humano num transbordar de sentido, sabemos emparelhada com a dolorosa morte ao egoísmo (e as suas ressacas, tristezas e vazios). Aquela morte que nos abre ao acolhimento vital da mais extraordinária mensagem da história – a saber: que Deus não é o nosso pior adversário, mas o nosso melhor aliado –, mas que a nós também foi comunicada ao mesmo tempo que éramos recordados das dores dos partos e da maternidade (cf. Jo. 16,21).