Por M. Correia Fernandes
Santo António é de Lisboa (porque lá nasceu, em data não bem conhecida, em torno de 1191-95). É de Pádua porque lá perto morreu e lá foi sepultado (na data conhecida de 1231, 13 de junho, dia em que é celebrada a sua festa litúrgica). Mas é também de Coimbra, porque ali ingressou nos Cónegos Regrantes da igreja de Santa Cruz, tendo depois assumido o hábito dos franciscanos. É portanto homem de três origens: a natal, a da sua formação e vocação e a da sua morte e nascimento da devoção.
Mas Santo António é também santo do Porto. De facto, sendo S. João Batista, o das festas populares referenciais que lhe são dedicadas (e diga-se que não é o padroeiro do Porto e se celebra também noutras cidades), é da figura de Santo António que se encontram mais elementos e referências devocionais: basta entrar nas casas comerciais da cidade para verificar que em numerosas delas, das mais diversas atividades, se encontra uma imagem ou ícone devocional de Santo António. Muitas podem ser as razões para isso, mas em tempo de pandemia a sua proteção certamente acumula com a da padroeira, Nossa Senhora – da Assunção ou de Vandoma – ou a de S. João, mesmo que não popularmente celebrado este ano.
Mas, se temos no Porto S. João da Foz e S. João Novo, temos Santo António dos Congregados e Santo António das Antas, sendo que a memória do primeiro é mais antiga que a de S. João, dado que a igreja atual foi edificada entre 1690 e 1703, em local onde havia outra mais antiga; e a segunda memória, da igreja das Antas, datada de 1937, é um revivescer da expressão da sua devoção. A igreja de Santo António dos Congregados lembra o século XVII e a de S. António das Antas os meados do século XX, e ambas são monumentos emblemáticos da cidade.
Deve lembrar-se que na diocese do Porto existem três paróquias cujo padroeiro é Santo António: Lomba (Gondomar), Corim (Águas Santas, vigararia da Maia) e Ribadouro (Baião), bem como o moderno santuário de Santo António, na cidade de Vale de Cambra, o qual recentemente celebrou 25 anos da sua fundação, e onde floresce uma escultura de José Rodrigues.
Permitam-me que saliente a imagem do santo na fachada da igreja dos Congregados, em que quase ninguém repara, porque está lá no alto, mas que é de uma construção tão hierática e meditativa que terá influenciado as mais populares que pululam nos estabelecimentos comerciais. Convido o leitor a lançar um olhar conspícuo e bem atento sobre a imagem que publicamos neste número.
A diocese de Coimbra anunciou um “Ano Santo” jubilar, comemorativo dos 800 anos do martírio dos cinco discípulos enviados por Francisco de Assis para anunciarem o evangelho no território de Marrocos. O seu martírio, em 16 de janeiro de 1220, impressionou tanto o jovem Fernando de Bulhões, entretanto ordenado sacerdote, que se decidiu tornar-se discípulo de Francisco de Assis, seguindo o seu ideal de simplicidade e pobreza. Tendo depois rumado a Itália, foi o próprio Francisco que tanto admirou as suas qualidades de sabedoria e sentido missionário que quis que fosse ele o seu sucessor na orientação da congregação a que propôs chamar “Frades Menores”. Esta admiração pelo estilo de vida de Francisco influenciou também a nossa literatura medieval, de tal forma que cedo inspirou e originou uma “Crónica da Ordem dos Frades Menores, 1209-1285”, cujo manuscrito do século XV foi publicado por José Joaquim Nunes, na qual se contém o célebre episódio de Frei Junípero, que deu origem ao conhecido conto de Eça de Queiroz “Frei Genebro”.
Este Jubileu conimbricense originou duas exposições: uma na igreja de Santo António dos Olivais e outra na igreja de Santa Cruz. Em ambas são recordados os episódios mais relevantes da história de Santo António e dos Mártires de Marrocos, com muitas imagens e esculturas que representam os cinco mártires e recordam de forma benevolente a sua história, bem como outros quadros relacionados, entre os quais obras de Vasco Fernandes (Grão Vasco) e da sua escola. A exposição integra imagens dos santuários de Santo António em vários locais da Europa, com realce natural para a grandiosa basílica de Pádua.
Os actos previstos integravam peregrinações, celebrações festivas, conferências e numerosas ações culturais, incluindo a própria festa de S. António, com uma procissão histórica e integração nas festas da Rainha Santa Isabel. Grande parte destes projetos foram impedidos pelas circunstâncias da pandemia, mas é possível que alguns ainda possam ter lugar nos próximos meses, uma vez que o programa previsto se desenrola até janeiro de 2021, incluindo um Congresso científico sobre “Os Mártires de Marrocos e Santo António” e um Concerto de encerramento com a oratória “De Fernão de fez António”, que é também o título da exposição que lhe é dedicada. Entre as propostas encontrava-se também uma “Missa de Santo António”, de António Victorino de Almeida, apresentada em estreia no grande auditório do Convento de S. Francisco, a 19 de julho. Será ainda possível?
É esta uma boa oportunidade para recordar os três sermões a Santo António, do Padre António Vieira, pregados em Roma na igreja de Santo António dos portugueses. No primeiro desses sermões, encontramos este início, inspirado pela evangélica palavra Vós sois a luz do mundo:
A um português italiano, e a um italiano português, celebra hoje Itália e Portugal. Portugal a Santo António de Lisboa, Itália a Santo António de Pádua. De Lisboa, porque lhe deu o nascimento; de Pádua, porque lhe deu a sepultura… Reparai, diz o evangelista, que António foi luz do mundo. Foi luz do mundo? Não tem logo que se queixar Portugal. Se António não nascera para o Sol, tivera a sepultura onde teve o nascimento; mas como Deus o criou para luz do mundo, nascer numa parte e sepultar-se noutra é obrigação do Sol. Profetizando Malaquias o nascimento de Cristo, diz que nasceria como sol de justiça. E que fez Cristo como sol, e como justo? Como sol mudou os horizontes, como justo deu a cada um o seu. Como sol mudou os horizontes, porque nasceu num lugar e morreu noutro: como justo deu a cada um o seu, porque a Belém honrou com o berço, a Jerusalém com o sepulcro. Assim também Santo António. Se Lisboa foi a aurora do seu oriente, seja Pádua a sepultura do seu ocaso”. (Sermões de Roma, ed. Difel, 2009, p. 189-190).
A beleza desta argumentação e a sua similitude podem ser estímulo para ler o resto dos sermões (ou ao menos um pouco). E se agora é Coimbra que lhe celebra um jubileu, que seja um foco de luz para toda a sociedade humana.