
Até à Solenidade do Pentecostes, a Casa Sacerdotal da Diocese do Porto viu-se na peculiar situação de ser uma das (relativamente) poucas comunidades do país a poder celebrar, comunitária e presencialmente, a fé. O inédito da situação impôs uma tarefa que os residentes desta comunidade assumiram convictamente: o de serem a voz, diante do altar do Senhor, de quantos não puderam participar em plenitude na celebração da Eucaristia. No momento em que volta a ser possível retomar, com prudência, o ritmo normal da vida e da celebração da fé nas nossas comunidades, é hora de dizer, agradecidos: «Missão cumprida»!
Como os ramos (e raízes) na videira
A Casa Sacerdotal do Porto é uma comunidade plural, formada por bispos, presbíteros, consagrados (de profissão religiosa e de consagração laical), leigas e leigos. Aqui vivem, além dos sacerdotes, várias senhoras (suas familiares ou não) que dedicaram a sua vida a acompanhar um ou vários sacerdotes e bispos. E aqui colaboram, embora não residindo cá, as Irmãs de São José de Cluny, presença contínua e preciosa, bem como alguns leigos, como o Sr. Joaquim Claro, nosso bom amigo e apoio solícito (como ansiamos por ver a família toda reunida outra vez, depois da ausência imposta pela presente pandemia!).
Quando, no passado dia 6 de Dezembro, D. Manuel Linda conduziu a visita do Núncio Apostólico a esta Casa, apresentou-lha referindo-se-lhe como um lugar de importância só comparável à própria Catedral, enquanto Igreja Mãe da Diocese e Casa do Presbitério. Em resposta, e recordando o célebre episódio em que Aarão e Hur sustentavam os braços de Moisés em oração enquanto os israelitas lutavam, D. Ivo convidou os membros desta comunidade a serem a «retaguarda orante» do bispo e da diocese.
O apelo foi escutado. E nem a pandemia do coronavírus, como é conhecido, fez estas pessoas baixar os braços! «Como os ramos na videira», os residentes da Casa Sacerdotal assumiram a missão de orar sem desfalecer, para que no meio de tanta instabilidade e de tanto medo, a seiva da oração continuasse a circular. E foi belo, muito belo, assistir ao que aqui aconteceu.
De todos os lados chegavam intenções de oração: amigos e familiares doentes, entes queridos que partiram para a eternidade e amigos mergulhados nas mais diversas situações de dificuldade. Acima de tudo, foi marcante ver isto: padres que rezam por padres. Talvez quase não tenha havido Eucaristia, terço, adoração eucarística ou exercício de piedade em que não se tenham recordado, além de todas as vítimas da pandemia, os irmãos sacerdotes que se afadigam pelo bem do Povo de Deus.
Como gosta de dizer um dos nossos mais venerandos residentes, «tudo o que diz respeito à Igreja diz-me respeito a mim». Mais do que os «ramos» na videira, talvez seja mais acertado comparar estas pessoas às suas raízes. As raízes não se vêem. Mas «o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa» (Mt 6, 4).
Ao ritmo da Liturgia
O nosso confinamento começou no passado dia 16 de Março, dois dias antes da primeira declaração do Estado de Emergência (é muito de louvar a visão antecipada e a prudente decisão da Direcção Técnica e dos padres que integram a equipa de Direcção, bem como a generosidade e a extraordinária abnegação dos funcionários). A interdição das saídas e a suspensão das visitas transtornou completamente os nossos ritmos habituais. De um momento para o outro, ficámos todos dentro da mesma casa, «no mesmo barco» e nas mesmas circunstâncias.
No entanto, o facto de este tempo ter coincidido com a Quaresma e o Tempo Pascal transformou a dificuldade em oportunidade; e este acabou por ser um tempo abençoado de reinvenção dos ritmos da Casa. Quer no que diz respeito aos aspectos práticos e logísticos do nosso quotidiano, quer sobretudo na vivência espiritual deste tempo. A Liturgia marcou o ritmo. Foi particularmente marcante a celebração da Semana Santa. Os residentes foram inexcedíveis no zelo com que se prepararam para a celebração dos dias maiores do Ano Litúrgico. Ninguém se poupou a esforços: «é a Páscoa do Senhor»! Toda a Liturgia do Tríduo Pascal foi celebrada com uma dignidade e uma nobreza da qual só é capaz quem, aproximando-se do ocaso da vida, sabe distinguir com clareza o essencial do acessório. Nunca serei capaz de agradecer o suficiente a oportunidade que tive de viver estes dias neste «Santuário de Gratidão», para usar a tão feliz expressão de D. António Francisco.
Caminho para a eternidade
Durante estes dias de confinamento, vimos partir para a Casa do Pai dois dos nossos residentes. Primeiro, o Padre Hermínio Bernardo dos Santos, presbítero da diocese de Lamego, no dia 18 de Abril; a seguir, D. Manuel Vieira Pinto, arcebispo emérito de Nampula, no dia 30 de Abril. Viver o luto nesta comunidade e em contexto de pandemia, com todo o medo que ela traz consigo, é complicado.
A frase mais marcante, ouvi-a a um dos sacerdotes mais idosos da Casa, amigo e companheiro de longa data de D. Manuel: para esse sacerdote, a partida do velho amigo não foi uma despedida, foi um «até já». A Casa Sacerdotal é assim mesmo: uma janela aberta sobre a eternidade. Nisto é preciso ter um olhar realista: se é certo que a todos é dirigida a exortação do Senhor – «vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora» (Mt 25, 13) –, esta é muito mais premente para quem, com o avançar da idade, se encontra «em peregrinação interior para a Casa do Pai», como diz o bispo emérito de Roma. Não se pode escamotear a realidade. Isto, porém, não é uma fatalidade; é parte da essência desta comunidade.
A Casa Sacerdotal não se resume, de modo algum, a ser a «última» ou a «penúltima morada» de quem quer que seja (como por cá às vezes se diz em tom de brincadeira), mas faz parte da sua própria natureza e finalidade ser tempo e lugar de reconciliação com a vida e de preparação para o encontro definitivo com Cristo. Claro que o caminho de cada um é pessoal. Mas, nesta Casa, esse não é um caminho solitário; pelo contrário, é um caminho apoiado pelos irmãos, que se ajudam mutuamente. Se isto é visível no dia-a-dia da vida, muito mais o é na hora da morte. Observando o modo como os vários padres e leigos viveram a partida destes homens e o desvelo com que rezaram por eles, veio à minha mente a comovedora descrição do trânsito de São Bento: «Sustentando os membros debilitados nos braços dos seus irmãos, de pé, mãos erguidas para o céu, entre palavras de oração exalou o último suspiro» (Gregório Magno – Diálogos, II, 37). Também estes dois trabalhadores da vinha do Senhor partiram para o céu sustentados na terra pela oração dos seus irmãos.
«Os vossos velhos terão sonhos e os vossos jovens terão visões» (Jl 2,28)
A vida nesta Casa faz sonhar com uma sociedade onde se vale pelo que se é e não pelo que se é capaz de fazer. O sentimento de «inutilidade», de se ser um «carro fora de serviço» é um problema que aflige muitas pessoas da terceira e quarta idades (e não só) e ao qual os padres e leigos da Casa Sacerdotal não são alheios. A «cultura do descarte» em que vivemos não ajuda nesse aspecto. No entanto, a vida nesta comunidade prova, com meridiana clareza, que é possível uma alternativa. Com o decorrer dos anos, muitas pessoas vão deixando de ser capazes de realizar tarefas e de assumir responsabilidades que anteriormente eram suas. Mas há uma capacidade que nunca se perde: a de dar e gerar amor à sua volta.
Mesmo no completo silêncio e na (aparente) ausência de gestos. Os últimos anos da vida de D. Manuel Vieira Pinto e a vida presente da D. Maria de Lurdes Teles, felizmente entre nós, são a prova eloquente disso mesmo. Diz o profeta que os velhos sonham e os jovens vêem. Vivendo estes dias tão ímpares junto de tão boa companhia, talvez me tenha sido dado ver algo do que será a sociedade no futuro, desde que saiba manter-se fiel ao respeito pela inviolável dignidade humana e deixar-se fermentar e «salgar» pela mensagem evangélica.
(José Pedro Novais, Seminarista em estágio pastoral)