
Por Alexandre Freire Duarte
Pode ser um erro de perceção decorrente da saturação de, nos últimos meses, ter passado muito tempo a contemplar, com o meu filho infante, a Riviera das gaivotas junto ao charco que se formou perto de minha casa. Pode. Gostaria mesmo de acreditar que essa é a melhor explicação para não me ter dado conta, nem sequer em mim, de uma séria preocupação para com o sofrimento do Deus que, sendo Amor, é ferido com as nossas feridas.
Quantos, como Rainer Maria Rilke no poema “Diante de ti”, manifestaram estar deveras comovidos com o Deus humilde que Se esforça, esvaído e sedento, por chegar ao copo da nossa misericórdia para conSigo? Muita gente tem dado atenção, e bem, ao nano-vírus, mas isso, em muitos, apenas alimentou a moderna Hígia enquanto mega-ídolo da saúde. Talvez isto nos tenha levado a esquecer do facto de que, como disse o “grande-papão-cor-de-laranja” do outro lado do Atlântico, a Igreja é algo de essencial que presta um serviço essencial. O historiador ateu Tom Holland chega mesmo a referir, no seu mais recente livro “Dominion”, que sem o Cristianismo não haveria nada a que pudéssemos chamar, mesmo nos nossos dias, de “Civilização”.

Terei sido misericordioso para com Deus nestes dias? Terei sido Igreja nestes dias? Não sei. Havia quem perguntasse onde estava Deus? Oferecia-lhe um poema de José de Faria. Havia quem indagasse porque tinha de se despedir dos seus, abandonados e sem apoio espiritual, recorrendo a meios digitais? Brindava-lhe com uma sessão de dança contemporânea polvilhada de Tai-Chi. Havia quem chorasse por perder o emprego? Dizia-lhe para ser estoico (como se Jesus alguma vez o tivesse sido…) imerso numa ética inerte. Também isso deitou abaixo o papel-de-parede, estampado com padrões de pedra, com que construímos a nossa fogueira de vaidades. Aquela que nos levou, com o tempo, a substituirmos a forte mensagem cristã por máscaras pseudo-protetoras feitas de um diluído croché ético-cultural que, no fundo, só protegem o “ego” de quem as usa. Eu, mais do que ninguém.
Por outro lado, quantos, sendo de esquerda, foram sepultados junto com os de direita? Quantos, com títulos de Doutores, foram cremados com assadores de frangos? Quantos que subiram na vida com cunhas foram esquecidos juntamente com quem foi calcado por aqueles? Aprenderemos alguma coisa com esta tremenda possibilidade de ruína do nosso indómito egoísmo? Aprenderemos alguma coisa com esta nossa prolongada Quarta-feira de cinzas repleta do Ressuscitado, mas apenas se vivermos sabendo que o nosso barqueiro não é Caronte, mas Jesus, o único que é a Ressurreição e a Vida? (cf. Is. 43,1s; Jo. 8,25)
As ameaças da doença e da morte (e, já agora, as do prestígio, riqueza e poder) devem-nos, como disse William Ernest Henley no poema “Invictus”, encontrar sem medo. Não como o Pedro jactante (cf. Jo. 13,37), mas como o que encarou o martírio (cf. At. 5,40s) depois de ter reconhecido a sua fraqueza (cf. Lc. 22,61s) e, depois e desde aí, ter experimentado que ninguém o separaria do Seu Amigo (1Pd. 1,3-9). Nestes dias, tais três Pedros seriam dados como saudáveis, pois não infetados com o Covid-19. Contudo, só o segundo estava vivo. Eis porque, não temendo a morte – pois imunizado pela certeza de que a morte por amor não mata, antes ressuscita, mesmo quando entre sorrisos o coração possa chorar (cf. Prov. 14,13) – pôde pastorear, e pascoar com, as ovelhas d’Aquele que é a Alegria do Mundo (cf. Jo. 21,17s; 1Pd. 1,8s).