Editorial: Fé e imunidade

Por Jorge Teixeira da Cunha

A epidemia desta Primavera parece que está a deixar-nos em paz, felizmente. Mas peço para voltar ainda uma vez ao assunto, com o objectivo de tentar aproximar duas realidades que parecem nada ter que ver uma com a outra: a fé no verdadeiro Deus e a imunidade à doença. O assunto não é simples. Mas a sua importância é enorme.

Há dois factos que nos podem servir de ponto de partida. O primeiro é que a medicina, com todo o respeito, isolou a doença, para a tratar, mas quase deixou de se ocupar com o indivíduo doente que tem diante de si. Por isso, trata mais as doenças do que os doentes. Essa opção deu uma grande eficácia às terapias, pelo menos das doenças agudas. Mas, por esse caminho, deixou de visar o indivíduo na sua totalidade e de ter acesso às condições individuais da superação da doença ou da imunidade diante da própria doença. O segundo facto é que há estudos empíricos que mostram que as pessoas que têm convicções religiosas equilibradas e profundas têm mais facilidade em se curar das doenças ou de resistir a elas.

Ambas as coisas dão que pensar. Desde logo por uma evidência das fontes bíblicas: o Evangelho de Jesus tem uma força terapêutica que está testemunhada em tantas narrativas de milagres de cura. Não podemos arrumar essas textos dizendo que são vestígios de uma cultura que acreditava em mitos e na magia. O sentido dos textos, depurado, é completamente diferente. De facto, a fé a que Jesus nos inicia é um fortalecimento da subjectividade e uma acção terapêutica. Esse caminho é uma qualidade permanente da iniciação cristã. O encontro com Jesus leva a pessoa à conversão, quer dizer, a deixar progressivamente as seguranças em que vive falsamente apoiada, e a uma reconciliação com a fonte verdadeira da vida que é dada em Jesus. Essa é a última explicação da terapia. Estamos, por isso, muito longe de uma ideia mágica sobre o milagre.

A conversão religiosa autêntica tem, pois, uma grande importância para a terapia e a imunidade. É que a saúde é uma qualidade do indivíduo, é a força de viver dada à sua subjectividade, e não apenas a boa composição física e química dos seus tecidos e órgãos. Por isso, ter saúde não é só uma questão física e química, mas é a força sensata de viver, mesmo com sofrimento e dor, causado pela contaminação ou com os achaques do processo de envelhecimento por que todos passamos. O mesmo se diga a respeito dos vírus e das bactérias que sempre existiram e existirão. A imunidade é um contínuo triunfo de nós próprios, como indivíduos vivos, diante das ameaças contínuas por que passamos e passaremos.

A nossa fé cristã não é, pois, simplesmente um fenómeno do mundo visível. Tem uma dimensão invisível que é absolutamente essencial para a nossa vivência e sobrevivência aos acontecimentos pandémicos que acontecem e acontecerão no nosso mundo. Da próxima vez que nos acontecer algo como nos aconteceu nos últimos meses, podemos certamente estar melhor preparados para dar o nosso contributo para a imunidade, neste nível que não foi nem é nada tido em conta nas políticas de saúde. Há uma prática religiosa que é visível e que pode ser veículo de contaminação. Cessando-a, damos um contributo para evitar o contágio, como fizemos. Mas temos também de lembrar que quanto mais desenvolvermos a nossa subjectividade, mediante a atitude orante e celebrante, mais capazes nos tornamos para resistir e este vírus e aos outros que virão. A este último nível, nós cristãos estivemos um pouco aquém no contributo que podemos dar à medicina e à saúde pública para superar as pandemias.