
Por Lino Maia
Um dos aspetos mais importantes da doutrina do atual Papa Francisco, no capítulo do ensino social da Igreja, foi o de não fazer deste ensino um capítulo à parte, mas de o concentrar no único anúncio do Evangelho do Reino de Deus.
Mesmo se a encíclica “A alegria do Evangelho” trata deste tema em dois capítulos sucessivos, o ponto decisivo e original é que a dimensão social do Evangelho não se ajunta como que justaposta ao Evangelho, mas está-lhe ligada do interior, faz parte dele intrinsecamente.
“Ao ler as Escrituras, escreve este documento, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus (…) A proposta é o Reino de Deus (Lc. 4, 43); trata-se de amar a Deus que reina no mundo. Na medida em que ele chegar a reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos” (EG. 180).
1.Numa sociedade secularizada, ou, como alguns preferem dizer laica, isto é numa sociedade em que o Estado respeita a liberdade religiosa e a plena expressão, incluindo o direito de associação dos cidadãos, inclusive a partir da sua crença, a Igreja não está junto ou acima desta mesma sociedade e por isso fecunda, desde o seu interior, a ação do Reino futuro, que deixa, já aqui, sentir a sua força e presença, na provocação e ação operativa dos crentes e homens de boa vontade.
Crer no Reino de Deus e sua justiça não é uma questão puramente individual (“salvar a sua alma”), nem consiste numa mera expectativa (“Deus há de julgar-me”), como se vivêssemos numa espécie de antessala duma eternidade futura; é primordialmente criadora, quer dizer produtiva e por isso mesmo crítica.
Assim entendida, a fé tem uma indiscutível e absolutamente intransferível dimensão pública.
É certo que, desde o Iluminismo, o Estado tem a pretensão de ocupar todo o espaço público, relegando para o espaço privado todas as formas de crítica e informação que não venham do seu seio.
Mas é justamente aqui, que a fé responde no espaço público com novas formas de presença. Formas de presença que devem ser críticas e provocadoras, justamente porque tentam não reproduzir o mesmo, mas atender a novas formas de fragilidade que surgem continuamente, inclusive nas sociedade da abundância em que a Igreja presta um serviço indispensável à sociedade porque lhe faz ver o diferente, quando esta tenta reproduzir o mesmo.
Frente a uma pretensão teocrática ou totalitária de cunho político, venha donde vier, a fé cristã, sem deixar de achar positiva a secularização e autonomia do mundo, relativiza todo o projeto humano, com pretensões de absoluto, único e insubstituível. O que defende a sociedade de pretensões mais ou menos totalizantes e a Igreja de individualismos de segregação da fé do mundo.
2.É a partir destes princípios que se deve defender a ação da Igreja na sociedade: ela defende o que é concreto e o que é diverso, contra a tentação do que é abstrato e burocrático, devolvendo a ação social à autêntica fonte. Para a Igreja o ser humano e a criação não é um número, é um próximo. E tentar responder à pergunta: quem é o meu próximo e a fonte da sua atitude profética – crítica e criativa.
Não se trata aqui ainda das relações Igreja Estado, mas das relações anteriores, religião-sociedade, Evangelho-sociedade. Estas são anteriores às outras, situando-se no campo da liberdade religiosa como serviço na e à sociedade.
Neste contexto, que deve ser seguido com rigor e ensinado com denodo, se a Igreja não quer ser vista como poder, se compreende a dimensão irrenunciável pública da fé e a sua importância decisiva. Dado que a convivência das pessoas na sociedade é algo de natural à pessoa humana e tendo em conta a definição do direito à liberdade religiosa, como direito fundamental, a evangelização deve reivindicar o seu conteúdo pleno e entre ele o anúncio do Evangelho aos pobres (Lc. 7, 22).
3.Ao agir segundo a sua natureza e na fidelidade ao Evangelho, a Igreja presta à sociedade um serviço muito importante de ordem pré-política e pré-partidária, mantendo a sociedade vigilante sobre os seus verdadeiros fins.
Na verdade, sem nenhuma espécie de transcendência, as sociedades, mesmo as democráticas, correm o risco de se esvaziar eticamente, se forças critico-libertadoras funcionando no seu seio, não lhe derem uma permanente informação outra.
Por isso qualquer Estado democrático necessita de grupos religiosos, culturais ou cívicos que, no livre exercício da sua participação política, transmitam continuamente uma correção de novidade e diferença que é a verdadeira fonte de enriquecimento da vida comunitária.