
Anuncia-se aos poucos o “regresso à normalidade”. Perante tanta distorção da vida que vivemos nestes dois últimos meses, têm vindo a emergir mensagens como “agora e sempre todos juntos”, “juntos vamos conseguir”, “vai ficar tudo bem” e similares. Substituiu-se nas mensagens das autoestradas o “Fique em casa” por “Guarde o distanciamento social”. O Confinamento deu lugar ao Distanciamento.
Porém, o que se entenderá ou poderá entender com o “regresso à normalidade”? Será que poderemos esquecer toda a experiência vivida? Que novas linhas de ação de poderão perfilar? Que lições poderá a sociedade e as pessoas retirar da experiência vivida, tão traumática e por vezes sem sentido que se entenda?
Parece-me, por isso que, na prática, o que se anuncia é o ingresso na anormalidade.
Com efeito a proliferação de normas que, inventadas nos gabinetes ministeriais, como exercício de imaginação, constituem um tal universo que anuncia o absurdo, como se tem vindo a advertir nas intervenções de muita gente nos meios de comunicação social.
Diz a tradição e a sabedoria popular que o que demais é moléstia.
É o que acontece com a profusão de normas que querem impor. O princípio virtuoso do “cuidar-se”, “cuidar a si e cuidar dos outros”, “ser um promotor de saúde pública”, podem ser bons propósitos e mesmo boas mensagens. Mas surgem-nos depois a normas que nos separam uns dos outros, que cerceiam o convívio e o reconhecimento, que nos levam à desconfiança. Há aqui uma contradição sobre a qual importa refletir.
Importa prevenir o contágio, mas não através de normas absurdas; aos males da convivência importa não contrapor os males do isolamento. Os números da pandemia não justificam o conjunto de normas que estão a ser impostas.
O mais triste e lamentável é a destruição do universo produtivo, dos universos laborais, dos universos do estudo e da aprendizagem, do conhecimento e do saber, que não é apenas individual, mas social e de convívio. Andamos à cata de casos isolados, que depois se badalam, e esquecemos o universo da normalidade.
Há que encontrar um meio termo equilibrado. Se se permitem as celebrações, que se façam na sua habitual estrutura celebrativa, com indicações de evitar aglomeração e demasiada proximidade. Não de inventem metros de distância e universos mascarados. Recomende-se a higienização, mas deixe-se à responsabilidade das pessoas.
Abram-se as casas comerciais. Que as pessoas possam ingressar nos seus locais de trabalho. Abram-se os serviços públicos por respeito aos cidadãos e para seu serviço. Significativo é que, com a abertura de cafés e restaurantes, as pessoas ali se dirijam, para saudação e por solidariedade.
Que normalidade queremos? A normalidade do funcionamento da economia, da manutenção dos postos de trabalho, das remunerações justas e convenientes. Mas evitem-se os exibicionismos políticos, os exibicionismos sociais, a disparidade gritante de ordenados e as comissões para privilegiados. Cultivemos o equilíbrio. Cultivemos o distanciamento inteligente e em vez do distanciamento compulsivo.
As epidemias fizeram parte da história humana, incluindo as da história bíblica: lembre-se o episódio das serpentes no deserto, em que havia o remédio simbólico que curava, e era a busca de sentido. Lembrem-se as epidemias medievais, as do renascimento, as da peste negra, as das diversas gripes e vacas loucas. Lembre-se a lepra, que afastava e destruía, mas que havia quem curasse pela via da espiritualidade e da socialização: “ide mostrar-vos aos sacerdotes”.
O drama é que agora a coisa é global. De repente vemos que o mundo é uma “aldeia global” de que falavam as boas intenções de promotores da socialização e dos movimentos capitalistas. Eis como um imperceptível vírus destrói ou modifica todas as torres de Babel dos impérios militares e dos empórios económicos. O certo e sabido é que estes se vão reorganizar, sempre em prejuízo do equilíbrio humano.
E a convivência humana e a justiça e a paz social?
CF