Covid-19: Não ao contágio. Sim a Liturgias “contagiantes”

Foto: João Lopes Cardoso

Não seremos o primeiro país europeu a «desconfinar», permitindo o retomar do culto comunitário. E as imagens que nos chegam das primeiras celebrações realizadas em obediência às medidas cautelares, aprovadas em cada caso, deixam-nos algo desconsolados: as distâncias parecem imensas e ilustram participações devotas, recolhidas, individuais, quase privadas, multiplicadas pelo espaço disponível, mas não dão a imagem de assembleias participantes a realizar uma ação comunitária. Será isso Liturgia? A reboque da «desconfinação» e na submissão às regras ditadas pelas autoridades de saúde, não estaremos a mortificar os princípios e regras da própria Liturgia? Não estaremos a regredir, promovendo uma prática litúrgica anterior não só ao Concílio, mas ao próprio movimento litúrgico em que os fiéis são «assistentes» piedosos mas não participantes calorosos, verdadeiros «sujeitos» – na rica variedade do Corpo Místico – da celebração memorial da nova Páscoa?

Na resposta a esta questão deve ter-se em mente a distinção entre «regra» e «exceção» e fazer o propósito determinado de não transformar a exceção em regra. O tempo, para já, é de exceção. As medidas de proteção oportunamente aprovadas pela nossa Conferência Episcopal e divulgadas em 8 de maio não são a «regra» do novo normal. No presente, a obrigação ética e evangélica de evitar novas ondas de contágio levou os responsáveis a preconizar celebrações em que se anulam ou diminuem ao mínimo (com máscaras e obsessiva higienização das mãos) os contactos de pessoa a pessoa, dos ministros com os sujeitos que recebem os sacramentos. Mas não se pretende minimamente reconfigurar os ritos e transformar as medidas cautelares em novo padrão da prática litúrgica futura. De modo nenhum!

A liturgia da Igreja, passadas as restrições desta época de emergência, voltará a promover a aproximação, o contacto, a participação integral – corpórea, terrosa, cósmica e cultural, social, afetuosa – nas ações litúrgicas. Voltarão a estreitar-se as assembleias na participação coral pelo canto, diálogos, aclamações, movimentos; voltarão os abraços e os beijos do gesto da paz (sem intrusão na intimidade alheia); voltaremos a fazer, em nós e nos outros, quando o rito o prevê, sinais da cruz, massagens com óleo e perfume; convocaremos todo o cosmos – terra, ar, fogo e água – para a adoração, o louvor, a bênção, a ação de graças, a súplica; haverá procissões, peregrinações, romagens, romarias, festa! Não abdicamos de liturgias contagiantes! O caráter sacramental/simbólico das ações litúrgicas não poderá ignorar essas implicações da lei da encarnação que, para a Liturgia, é «direito constitucional».

Por isso, aqui fica a recomendação: não confundir exceção com regra; não permitir que a exceção se transforme em regra; mesmo em tempo de exceção, inspirar todo o agir litúrgico nas regras estruturais da liturgia mais do que nas exceções conjunturais da pandemia; diminuir as exceções ao mínimo indispensável decorrente da obrigação de proteger os fiéis; cultivar uma arte de celebrar que propicie celebrações dignas, belas, mistagógicas.

Devemos também esclarecer alguns conceitos. «Público» não é sinónimo de coletivo e, muito menos, de multitudinário. O Presidente da República, representando toda a nação, realiza um ato público quando promulga uma lei, no silêncio e isolamento do seu gabinete; mas quando participa num encontro de família, porventura com muita gente e cobertura da comunicação social, realiza um ato privado… As ações litúrgicas nunca são ações privadas: são sempre culto público porque pertencem a toda a Igreja, manifestam-na e afetam-na (SC 26). O seu caráter «público» é intrínseco e decorre de serem ações de Cristo que associa a si a Igreja tendo, portanto, como sujeito o «Cristo total» (SC 7). Não importa se os intervenientes são muitos ou poucos; se essas ações ocorrem no recinto de um grande santuário com a presença e participação de centenas de milhares de fiéis ou se acontecem numa igrejinha perdida na serra ou se – caso limite mas não excecional – toda a representação sacramental do «Cristo inteiro» se concentra no sacerdote que, por razões conjunturais, celebra a Eucaristia sem a presença de outros fiéis. Mas esse intrínseco caráter público deve, na medida do possível, conduzir a celebrações «comunitárias». O Concílio, em SC 27, formulou este princípio de forma clara: «Sempre que os ritos admitem, segundo a natureza própria de cada qual, uma celebração comum, com a presença e participação ativa dos fiéis, inculque‑se que esta deve preferir‑se, na medida do possível, à celebração individual e como que privada». Nem «celebração individual e como que privada» nem participação «individual e como que privada».